1.Fizemos nossos cartazes de cartolina, de papelão, de sonho e neles escrevemos com caneta piloto, com giz de cera, com tinta e com sangue aquilo que já não mais suportamos, aquilo dói sobretudo.
Nos furtam até o direito mais básico de ir e de vir. Imobilizam e interditam as ruas da nossa esperança de ser aquilo que sonhamos um dia, na infância. Viver assim não faz sentido.
Pois um novo sentido para nossa vida vamos formulando, enquanto caminhamos, por quilômetros e quilômetros cidade adentro, sobre duro asfalto. A cidade a nós pertence.
Se as palavras ainda não refletem com exatidão a alma, ainda são um poema em formação embora já belo, é preciso continuar procurando, sem interromper a marcha. Os pés doem mas não param.
O Jornalirismo murmurou, bradou algumas palavras nos idos de junho. Porém, há algo que ainda não foi dito.
2.
Imo. Em meio ao silêncio, ao berro
da cidade, conversavam baixinho flores. Era preciso que houvesse muito mais
pólen. Poema em flor de Letícia Mendonça:
A cidade dorme fria
Com seus dentes de concreto
E mandíbula saciados
Roncam nos encanamentos suas engrenagens
(ruídos, plaquetas
gás lacrimogêneo, glóbulos e sussurros)
A cidade dorme escura
e as pálpebras cerradas não enxergam
as palavras grafittadas
nos ossos e nos muros
Mas quando o suor eclodir pela epiderme
(e lágrimas, e vinagre, e esperma)
Germinarão as palavras
Em coro e flores
“O amor é importante, porra!”
3. Vamos caminhar: Sílvio Valentin compartilha a boa-nova indignada do Brasil, em mais uma carta ao saudoso e sempre indignado Henfil.
Cara-pintada Henfil,
Minha terra tem Palmeiras, Corinthians, Seleção Brasileira, Íbis e
uma torcida que saiu às ruas do país e soltou um grito que estava aprisionado
no DOPS das gargantas nossas.
Acredite! Os estudantes deram um cascudim bem
dado na cabecinha de uma porção de gente que acorda, escova os dentes, toma
café, obra (e como obram) pensando em como vão ajudar os mais necessitados.
Será?
Os filhos dos caras-pintadas (o pessoal que disse não ao
presidente-atleta) deflagraram um movimento para reduzir o valor das passagens
dos transportes coletivos e conseguiram elevar o espírito de brasilidade, que
estava adormecido em berço esplêndido – dentro de cada homem e mulher de bem
desta nação adolescente.
No noticiário, na internet, nas redes sociais, a visão de uma
senhorinha de 80 anos de idade, que engrossou uma das passeatas com um cartaz
que provavelmente trazia os seguintes dizeres: “A minha parte é não ter
partido/ Sou mulher de todos os séculos e caminho ao lado de quem empunha a
bandeira da liberdade/ Meu peito é juvenil”.
É como canta o Zé Geraldo para Bob Dylan: “Ei você, que tem de 8 a
80 anos/ Não fique aí perdido como ave sem destino/ Pouco importa a ousadia dos
seus planos/ Eles podem vir da vivência de um ancião ou da inocência de um
menino/ O importante é você crer na juventude que existe dentro de você/ Meu
amigo, meu compadre, meu irmão/ Escreva sua história pelas suas próprias mãos”.
Ouça aqui “Como diria Dylan”, por Zé Geraldo:
E os governantes? Aos poucos foram entendendo que as passeatas não
eram caso de polícia e sim de reposicionamento moral por parte de quem foi
eleito para ser lembrado pela dignidade, pela lisura e não pela quantidade de
dinheiro público que conseguiu desviar para algum paraíso fiscal.
E a imprensa? Parte dela ficou meio acuada, porque empresta a mão
direita ao diabo e a esquerda a Deus – e Deus é quem tem a maior aprovação
popular, um dia foi o presidente-atleta, outro o presidente-metalúrgico, o
sociólogo, o acadêmico do bigode vistoso, a primeira mulher presidenta e assim
uma das emissoras do país constrói e desconstrói a imagem de quem desagradar os
telespectadores – digo, eleitores.
Então, é assim: o momento é histórico e os políticos,
pré-históricos. As ações democráticas vistas nas ruas estão muito distantes dos
discursos – existiam arruaceiros (sim), existem arruaceiros que comprometem o
futuro de gerações inteiras – homens que transformam água em cicuta – homens
que engolem trigo e cospem gafanhotos – homens cercados de estupidez e medo.
E como diria Dylan, em “Blowin’ in the wind”: “Quantas estradas um
homem precisará andar/ Antes que possam chamá-lo de homem?”.
Vamos caminhar...
4. Hino da República Popular do Brasil: Vamos lutando
e cantando nosso hino de liberdade pelas ruas, pelas praças, na marquise do
Congresso. Somos um brado só. Uma releitura de Carol Peres.
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas (E o povo começa a gritar)
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas (E o povo começa a gritar)
De um povo heroico o brado retumbante (Heroico, brado, retumbante)
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos (Após a guerra, o raiar
apresenta a vitória)
Brilhou no céu da pátria nesse instante (E não há guerra nem policiais
que tirem o prazer de sorrir)
Se o penhor dessa igualdade (É por isso que todos, todos, clamam)
Conseguimos conquistar com braço forte (A Luta e o grito da nação
tornam-se apenas um)
Em teu seio, ó liberdade (liberdade, melhorias. Um país igualitário)
Desafia o nosso peito a própria morte! (A morte seria apenas uma consequência,
porque vale a pena lutar)
Ó Pátria amada (muito amada)
Idolatrada (Idolatrada com arrepio no peito e emoção nos braços)
Salve! Salve! (É assim que se constrói uma nação)
Brasil, um sonho intenso, um raio vívido (Um país justo)
De amor e de esperança à terra desce (Chega de desmando, de maldades e
desigualdade)
Se em teu formoso céu, risonho e límpido (Chega de corrupção. Queremos
honestidade)
A imagem do Cruzeiro resplandece (Para que a vitória seja una. Seja para
todos)
Gigante pela própria natureza (Gigante, para lutar, gritar e
cantar por melhorias)
És belo, és forte, impávido colosso (És Brasil. Mereces demais uma
manifestação a teu favor)
E o teu futuro espelha essa grandeza (Para que nossos filhos possam ter
um mundo melhor)
Terra adorada (Terra amada! Terra querida!)
Entre outras mil (Lutar por ti, gritar por ti, clamar por ti)
És tu, Brasil (Meu país, minha vida, minha idolatria)
Ó Pátria amada! (E eu gritaria, me machucaria e morreria por ti)
Dos filhos deste solo és mãe gentil (Porque sou tua filha, nasci da tua
terra e te amo.)
Pátria amada,
Brasil!
5. Os cínicos e os violentos: As manifestações contra o aumento das tarifas do transporte público mostram a força da indignação e da esperança, contra quem quer deixar tudo como está. Grito de primeira hora de Marcus Vinicius Batista.
Os protestos contra o aumento nas tarifas de ônibus, em várias capitais brasileiras, são sintomáticos. Servem, acima de tudo, para delinear qual o papel e o limite de cada personagem envolvido no episódio. E reforçam nossa incapacidade de lidar com o processo democrático, quando ressuscitam – via saudade – comportamentos que deveriam estar presentes nos livros sobre a ditadura militar.
Assim como as greves, manifestações públicas são direito dos
cidadãos. Ninguém deve fazer apologia à violência, mas não me parece ser o caso
a discutir neste espaço. Os atos violentos escondem, na verdade, as posições de
quem adoraria ver o estado de coisas em posição de repouso, adormecido,
destinando e assegurando privilégios a quem se considera um degrau acima.
6. Geração da utopia e o sistema de transporte público: O escritor Sacolinha, que já foi cobrador de lotação, lembra a realidade: só empresário ganha com transporte público hoje em SP.
Demorou mais de dois anos, mas assistimos à prova viva e contundente de
que a internet e suas redes podem colocar na vitrine questões públicas que
diversas instituições – inclusive parte da mídia, a grande mídia – se esforçam
para calar. O bolso teve que sentir a dor para que muitos se mobilizassem.
Vinte centavos pesam bastante no orçamento de quem conta as moedas para a
próxima refeição.
Enquanto os debates virtuais passeavam por assuntos falsamente
distantes, como corrupção e meio ambiente, foi possível testemunhar o
predomínio dos ativistas de sofá, que prometem aderir a todas as causas, mas
não se comprometem de fato nem com gritar pela janela da sala.
O aumento das passagens de ônibus bateu na porta de muita gente,
com ou sem poder de decisão. Os protestos esgarçaram os limites entre a
tolerância e a passividade diante de um serviço ruim, nada fiscalizado e caro
demais. É preciso reclamar contra um serviço que deveria apresentar o mínimo de
qualidade diante de impostos elevados; aliás, cobrados com pontualidade.
O transporte público é mais um elemento de desrespeito às pessoas,
que se espremem como gado em coletivos velhos, sacolejantes, conduzidos por
motoristas exaustos, em jornadas semiescravas.
Os
protestos têm a função de colocar na mesa, no mínimo, uma agenda pública em
torno dos sistemas de transporte coletivo. Nesta semana, se depender de boa
parte da imprensa, perderemos mais uma oportunidade.
Assisti a horas de noticiário, li mais de vinte reportagens em
jornais e vejo o quanto os jornalistas podem ser cínicos. Enquanto fingiam ser
somente testemunhas, os jornalistas usavam sua muleta da sorte: os rótulos. Os
manifestantes eram apenas vândalos que não mereciam voz. Os policiais vestiam a
armadura da contenção dos rebeldes sem causa.
É triste ver como os cínicos enterram o próprio passado quando
engordam de vaidade. Quando os jornalistas se assumiram personagens pelas
bombas da polícia, o espírito de corpo gritou nas redações. Os manifestantes
ganharam uma causa. Os policiais viraram truculentos mal preparados. Os
políticos correram para dizer que o teatro das investigações estava em cena.
Em ambos os cenários, imprensa e governo – deste não se espera tal
atitude – não pensaram em discutir a situação do transporte coletivo. Em São
Paulo, o governo do estado (e também a prefeitura) apenas confirmaram o
reajuste, com a coerência de sempre na área do transporte. Os pedágios que o
digam!
A lição, por vezes, costuma aparecer no passado e merece adaptação ao
presente. Nos anos 50, no sul dos Estados Unidos, os negros eram maioria nos
ônibus. Eram humilhados por conta da segregação racial. A situação só melhorou
quando, a partir de uma mulher chamada Rosa Parks, os negros se recusaram a
tomar ônibus. Preferiam andar a pé.
Após 381 dias, as empresas de ônibus cederam, diante dos prejuízos
financeiros. É claro que o contexto é outro, mas quando se fala em humilhação
diária, talvez seja a hora de pensar numa forma de cobrar por um serviço
melhor, recusando-se a comprá-lo ou mexendo nos bolsos das companhias.
Os acontecimentos dos últimos dias têm me dado muita esperança. Eu
já imaginava como nossos filhos nos teriam daqui há alguns anos. Talvez
seríamos conhecidos como a geração que cultuou a bunda. Felizmente, parece que
a nomenclatura será menos vergonhosa. Creio que não chegaremos a ser utópicos,
como a geração que viveu a Ditadura Militar nas décadas de 1960 e 1970, até porque
nossos sonhos, lutas e conquistas estão mais próximos da realidade do que
naquela época. Isso tudo porque tivemos os jovens das duas décadas citadas que
lutaram por sonhos que estamos vivendo hoje.
O estopim dessas manifestações me chama a atenção.
Atualmente, as únicas pessoas que ganham com o transporte público
da cidade de São Paulo são os empresários. Antes, o leque era maior, já que
envolvia perueiros, traficantes, policiais e alguns líderes do sindicato dos
motoristas e cobradores de ônibus.
Os perueiros não pagavam impostos nem prestavam contas dos seus
ganhos. Abriam linhas de transportes sem nenhuma fiscalização. Traficantes eram
pagos para proteger essas linhas, do olho-grande de policiais militares, que
viam nos lotações um meio de complementar a renda, cobrando pedágio dos
perueiros, tomando de assalto as linhas clandestinas e até rodando por elas com
suas peruas compradas com o dinheiro da corrupção.
Com a queda na arrecadação, os donos das empresas de ônibus
cobravam soluções da prefeitura. Como a solução, por parte do poder público,
era somente paliativa, os empresários resolveram agir. Oficialmente fizeram
campanhas contra os lotações, exibindo, atrás dos ônibus, mensagens agressivas
contra os perueiros. Por baixo do pano, pagavam alguns líderes do sindicato dos
motoristas e cobradores para que promovessem greve e queima de ônibus. Com isso
tinham argumentos para pedir o aumento da passagem e dos subsídios do governo
municipal, além, é claro, de receber ônibus novinhos das empresas seguradoras.
Hoje, muitos desses perueiros, policiais e sindicalistas são donos
ou têm parte nas empresas de ônibus.
Em 2010 lancei, pela editora Nankin, o livro Estação Terminal,
romance que tem como pano de fundo a história do transporte na cidade de São
Paulo, com enfoque no descaso das várias gestões da prefeitura, que fez com que
crescesse o transporte clandestino e alternativo da capital paulista.
Selecionei abaixo dois trechos deste romance que demonstram um
pouco do que falei até aqui.
Meu embasamento para a escrita do livro em questão foram os 12
anos em que trabalhei como cobrador de lotação na Zona Leste de São Paulo. E é
bom ressaltar que o livro foi usado pelo Ministério Público da cidade e por
alguns investigadores para dar solução a muitos casos arquivados, que envolviam
acidentes, assassinatos e corrupção. Mesmo a obra sendo de ficção.
Trecho 1
Em se tratando de movimento, a linha Inácio Monteiro-Terminal
Itaquera era uma das mais generosas do Estado de São Paulo. Com sessenta carros
rodando, cada um deles carregava cerca de duzentos e cinquenta passageiros de
manhã e mais trezentos na parte da tarde e noite. E ainda havia a linha de
ônibus com doze coletivos que andavam lotados pra cima e pra baixo.
O bairro Inácio Monteiro era parecido com a Cidade Tiradentes. Foi
ocupado irregularmente na década de 1970 e cresceu tanto que os governos
tiveram que investir. O que mais trouxe dignidade para aquelas pessoas foram as
políticas habitacionais, em sua maioria resumidas nos famosos predinhos do
CDHU.
Como a oferta de emprego no entorno era ínfima, noventa por cento
das pessoas que trabalhavam tinham seus empregos no centro de São Paulo. Por
isso a grande quantidade de passageiros.
Com toda essa gente pra ser carregada e tanto perueiro pra
carregar, a linha movimentava uma grana violenta. Todo mundo ali ganhava bem:
cobrador, motorista, dono da perua, fiscal, e os donos da linha, principalmente
eles.
Matracão e Dinailton eram os proprietários, e moradores do bairro
que levava o mesmo nome da linha.
Em muitas ocasiões tiveram que pedir proteção ao tráfico, porque
várias vezes tentaram tomar a linha. Eles não eram envolvidos com o crime nem
arma tinham em casa. Na verdade eram dois sortudos que acertaram em cheio
quando, em 1994, decidiram abrir a linha. Só que ela foi crescendo e eles
começaram a ficar tensos. Qualquer sinal de alerta abriam o caixa da linha para
pagar aos traficantes e ter uma proteção. E a grana não era pouca. Tanto que,
para os traficantes faturarem aquele dinheiro, tinham que vender drogas durante
um mês. Com isso dá pra ter ideia do tamanho da linha e também do tamanho do
medo de Matracão e Dinailton.
Esses dois adquiriram o hábito de andar de cara fechada, gingando
e falando na gíria, para fingirem que eram barra-pesada. Mas de bobo não tinham
nada. A linha se sustentava de sessenta carros não era à toa. Desde o ano de
1997 eles investiam a grana que ganhavam. Das vagas existentes ali, quarenta
foram vendidas e as outras vinte estavam alugadas. O dinheiro dividido meio a
meio foi usado na compra de casas, sítios e apartamentos, além de carros,
pagamentos dos estudos dos filhos e ações nas bolsas. Todo esse
empreendedorismo era porque eles sabiam que mais dia menos dia algum
costa-quente tomaria a linha e daria um pé na bunda deles. E o pior é que esse
dia chegou.
Trecho 2
Arilson andava radiante. Estava com o rabo cheio de dinheiro e não
sabia nem mais em que investir. Tinha doze apartamentos, seis casas na praia,
um iate, dois jet-skis, três sítios, uma empresa de segurança e uma
escola particular, ambas usadas de fachada para a lavagem do dinheiro sujo da
lotação.
Estava negociando a compra de dois helicópteros e um pequeno
avião Legacy.
Em que mais investir?
Se fosse esperto, investiria em si mesmo. Blindagem pessoal era o
que precisava. Caso a Receita Federal procurasse saber de onde ele tirava
dinheiro para ter um rendimento exorbitante em apenas dez anos, com certeza,
seria preso.
O investimento em proteção não precisava ir longe, se fizesse uma
lista de prioridades, assassinar o seu parceiro seria a primeira tarefa.
Sacolinha é também autor de Graduado em Marginalidade (romance), 85 Letras e um Disparo (contos), Peripécias de Minha Infância (romance
infantojuvenil), Manteiga de Cacau (contos) e Como a Água do Rio(autobiografia).
7 Novos dias: Por entre os escudos, Serginho Poeta descobre outro dia, e para lá vai, nós vamos, sem medo, rumo a outro tempo. O dia é hoje.
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Nos metros à frente a fria coluna
E sigo em frente, pois pouco me resta
Sou só uma peça na grande comuna
Reúna seus homens, reúna, reúna...
Novos dias me acenam do lado de lá
Pouco me resta, já não tenho sono
Já não tenho medo, já não tenho dono
Só tenho a vontade de continuar
Com sangue no rosto e brilho no olhar.
8 Sobre cavalarias, barricadas e caos: Os manifestantes se refugiam da repressão policial onde mora o Cafezinho. História com aroma de luta e reflexão, por Mariana Haas.
Minha casa – sempre tão tranquila e acolhedora – nesse dia era apenas acolhedora. O som ambiente, normalmente composto de conversas animadas e música discreta, virou um amontoado de palavras descoordenadas. Bombas. Tiros. Gritos de horror.
Lá dentro havia um pouco de tudo. Um microcosmo do mundo exterior. A
televisão estava ligada num desses programas "mundo cão". O
apresentador vibrava com cada investida policial. Cada um que entrava trazia
alguma novidade. Novidade que sempre ia na contramão das trazidas pelo tal
programa.
Estávamos, lá. Apavorados. Assistindo à nossa esquina pela TV. Sem poder
colocar a cabeça para fora da janela. Nesse momento, entra uma conhecida minha
de alguns anos. Nervosa. Com o coração aos pulos. Trazia consigo, além da
bolsa, cadernos e diversos outros materiais de trabalho nos braços. Ela mora lá
perto de mim. Tentava chegar em casa, quando a cavalaria da Polícia Militar
avançou para cima dela e de algumas outras pessoas. Detalhe: elas estavam na
calçada e tentavam apenas atravessar a rua. “Teve gente que fugiu. Gente que
subiu nos canteiros. Eu vim pra cá.”
Em seguida, entra uma outra amiga minha de muito tempo. Nervosa.
Com medo. "Vocês não acreditam no que eu vi: os próprios policiais
colocavam fogo no lixo, formando barricadas! E ainda empurravam com o pé, para
que pegasse fogo mais rápido!"
Por fim, alguns manifestantes entraram na minha casa. Começaram a
falar sem parar sobre o que estava acontecendo. Os amigos que apanharam. Outros
que passaram mal. Outros que foram presos. Minutos depois, três bombas de gás
lacrimogêneo foram jogadas na porta. O gás invadiu minha casa. Por baixo da
porta. E foi guardanapo e vinagre para todo lado.
O caos estava posto. O cenário era de guerra. Para mim lembrava
uma daquelas cenas de bombardeio que sempre vemos em filmes sobre a Segunda
Guerra Mundial. Ou, para dar um exemplo mais tupiniquim, aqueles famosos
tumultos entre militares e militantes em 1968. O dia foi digno do mais tenso
filme de terror. E tudo isso apenas por uma reivindicação... Tudo isso porque
as pessoas cansaram de ser bons cordeiros desse rebanho brasileiro falido. Tudo
isso pela não aceitação do aumento na tarifa dos ônibus. Será mesmo só por
isso?
9 INdiretas Já: Jussara "Gonzo" Nunes e uma tirinha irônica diretamente da passeata.
10 O efeito colateral: Ele chegou de soslaio e parece duvidar da força das ruas. Sua bandeira, "A Cura", vem como afronta, mas ele parece brincar e se divertir. Perfil de Marco Feliciano, por Marcus Vinicius Batista.
O deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) é muito bom no que faz. Ele não só resiste há quase quatro meses à frente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, como também mostra que sabe como poucos navegar nos intestinos da política do Congresso Nacional. E sem sujar os cabelos artificialmente alisados.
Marco Feliciano sempre foi um parlamentar de baixo clero e reage às
provocações como anão de jardim, nas sombras, mordendo o osso no descanso dos
cachorros grandes. O deputado paulista nunca se envolveu em questões centrais
da política e da economia, assuntos que dominam as conversas entre os leões do
Poder Legislativo. Sobraram para ele pautas sociais e culturais, essenciais
para a sociedade brasileira em seu cotidiano, mas desimportantes e ignoradas
pela Casa.
Feliciano entende com clareza as regras do purgatório. Ele não está na
presidência da comissão por seus méritos, e sim pelo que e quem representa,
para rezar um verbo da moda. O deputado pertence a um partido nanico, o Partido
Social Cristão, irrelevante para as decisões centrais da macropolítica, mas que
compõe a horda de legendas sanguessugas que gravitam em torno do PT ou de quem
estiver sentado na cadeira do Palácio do Planalto.
A Comissão de Direitos Humanos e Minorias, infelizmente, é moeda de
troca, de baixo valor no mercado das alianças. Tanto que o PT, tradicional
controlador da comissão, abriu mão dela para um partido inexpressivo, ávido por
mergulhar no pequeno poder. Os deputados, na prática, pouco se envolvem em
assuntos das chamadas minorias. Uns preferem flutuar com a maré da pauta
principal; outros nem sequer sabem que tais problemas sociais existem.
Marco Feliciano pode ser homofóbico, intolerante e racista, mas não é um
idiota. O parlamentar paulista cresceu dentro de um arco religioso tão grande
quanto diverso, principalmente nas regiões de Orlândia, onde nasceu a 12 de
outubro de 1972, e de Presidente Prudente, no interior de São Paulo. Nada mais
distante da grande imprensa paulista, sempre centrada no próprio umbigo – em
outras palavras, na política da capital – e que o desconhecia até que os
estragos estivessem em curso.
Pastor, conferencista e empresário, como se apresenta no portal da
Câmara, Feliciano teve 212 mil votos. Foi o deputado mais votado da bancada da
Bíblia e o 12º dos 70 parlamentares por São Paulo. Esses números também indicam
como ele tem noção exata de onde se encontra nos intestinos dos acordos
políticos.
Marco Feliciano está lá porque representa, sim, muita gente. E que são
cúmplices, corresponsáveis pelas sandices em uma comissão que deveria merecer
mais holofotes pela relevância de sua agenda.
A esperteza do presidente da comissão ficou clara com a aprovação do
projeto que autoriza psicólogos a tratarem a homossexualidade; no rótulo, a
“cura gay”. Feliciano aproveitou mais uma brecha nas lacunas da fiscalização do
poder. O cochilo e o cansaço habituais de quem acompanha tantas ações ao mesmo
tempo no parlamento brasileiro.
A “cura gay” passou na Comissão de Direitos Humanos e Minorias no vácuo
de bandeiras, gritos de guerra e outros movimentos dos protestos pelo país. Uma
piscadela para o lado e ele deu o bote, mesmo sabendo que a proposta não
seguirá adiante. Ainda faltam duas comissões, em uma delas o deputado é mero
figurante, a de Comissão e Justiça, para que a “cura gay” alcance o
plenário.
Independentemente disso, Marco Feliciano já acariciou seu curral
eleitoral e religioso, contou com o silêncio pio dos colegas de bancada da
Bíblia e, na prática, ganhou o respeito e a conivência de parte da sociedade.
De fato, muitas pessoas ainda compreendem a opção sexual como doença e/ou como
desvio de caráter, passível de consertos comportamentais, do uso da prostituta
à surra e – quem sabe? – terapia, internação e medicamentos.
As pressões populares, provavelmente, provocarão a morte por inanição do
projeto da “cura gay”. Mas não podemos incorrer no pecado da soberba: Marco
Feliciano e a turma que abusam da fé em benefício próprio mal começaram a
operar seus milagres. Eles são bons no que fazem.
11 Queda de braço ou quebra de braço?: Para Antônio Lemos Augusto, um sistema político só trabalhará bem quando todos nós lutarmos por ele, fiscalizando-o.
Não está errado o
fazendeiro votar no grande dono de terras para o Parlamento. O que está errado
é quem não tem terra votar no latifundiário. Não está errado o operário votar
no trabalhador-sindicalista para o Parlamento. O que está errado é ele votar no
grande empresário. Não está errado que o evangélico vote no pastor de sua
igreja. O que está errado é quem não comunga de tal fé ter o mesmo voto. Não
está errado o sistema representativo na democracia. O que está errado é que,
com todas as formas de fiscalização que temos hoje na internet, votamos sem
saber em quem estamos votando.
O sistema eleitoral pode e deve ser melhorado, mas nenhum sistema
funcionará para aquele que vota em pessoas que não irão representá-lo.
Exemplos? Um óbvio: Mato Grosso, onde vivo, é o estado de maior população
indígena do país, mas não tem nenhum deputado estadual que seja índio. Enfim,
democracia se faz com voto. Pode até não ser um sistema perfeito, mas as opções
à democracia certamente impediriam que você estivesse postando o que quer na
sua conta do "Face".
O Brasil experimentou diversas formas de sistemas não
democráticos. A ditadura do Império. A ditadura da República Velha. A ditadura
Vargas. Aí, tivemos um arremedo de democracia por uns dez anos e nova ditadura,
agora da milicada. Eu nasci na ditadura, num dos anos mais cruéis dela. Lá em
maio de 71, enquanto eu saía de minha mãe, centenas entravam em porões para ser
torturados.
Quer conhecer regimes sem políticos? Não tem. Mesmo na ditadura. A
diferença é que, na ditadura, você não pode criticá-los. Enfim, critique, mas
faça a sua parte. Vote em quem represente você. Você é dono de comércio? Então
vote em alguém que represente o setor comercial, que vai lutar pela desoneração
tributária no seu ramo, que irá buscar flexibilizações em legislações na sua
área. Isso é legítimo, democrático.
Cara, acesse o site do Senado e pesquise o que o povo por lá está
fazendo. Faça o mesmo no site da Câmara dos Deputados. Poucos fazem isso.
Generalizar a ruindade política é favorecer aquele que não presta e retirar o
ânimo daquele que busca representar legitimamente o setor que o elegeu.
E outra: entre na política eleitoral. Candidate-se. Não quer?
Então peça votos para quem seja merecedor. Ajude a fazer a diferença.
Democracia é queda de braço, diferentemente da ditadura, que é quebra de braço.
Eu já fiz a minha opção, desde quando um pinguinho de consciência entrou na
minha cabeça.
Antônio Rodrigues de Lemos Augusto é jornalista, escritor e
advogado. Leia mais dele no blog Balaio Crítico.
12 O
soft power brasileiro:
O chamado "poder leve" é aquele que se exerce pela força da cultura.
E isso, claro, depende de políticas sérias e contínuas. Opinião de Leonardo
Cássio
A expressão Soft Power foi cunhada pela primeira vez
por Joseph Nye, professor de Harvard e autor do livro Soft Power: The
Means to Success in World Politics (Soft Power: Os Meios para o
Sucesso na Política Mundial), de 2004. O “Poder Leve”, de acordo com Nye, é
a possibilidade de uma nação, grupo político ou instituição representativa influenciar
comportamentos e tendências por meio do viés ideológico e cultural, sem o uso
de poder bélico. A ideia, portanto, é conseguir influência e poder utilizando o
patrimônio intelectual e cultural que se tem em um país, por exemplo.
Países que possuem um traço cultural marcante, uma postura ideológica
contundente e que investem em áreas, como arte, cultura e educação, tendem a
ter um poder de influência alto em certos campos, chegando a ser hegemônicos em
alguns casos. O cinema, para os norte-americanos; a culinária, para os
franceses; e o design, para os alemães, são alguns dos muitos exemplos de Soft
Power. A contradição, neste caso, é que essas nações historicamente foram
(ou são) marcadas pelo Hard Power, pelo belicismo, também. A
Alemanha hoje possui postura mais enfática no campo econômico. A França, sim,
está atualmente em ações militares, como no caso da intervenção no Mali, país
do continente africano afundado na guerra civil, e os Estados Unidos, com os
combates no Iraque, Afeganistão etc.
Neste contexto, o Brasil é uma das grandes apostas. Em primeiro lugar,
por não ser considerada uma nação de poderio bélico. Suas poucas intervenções
militares nos últimos tempos foram de caráter humanitário, como no caso do
Haiti, a partir de 2004. Em segundo lugar, pela notória riqueza histórica e
cultural do país, internacionalmente reconhecida, principalmente pelo binômio
carnaval-futebol, mas que tem outras áreas de destaque global, como a música, a
arquitetura e a propaganda.
Com os eventos de grandes proporções, como a Copa do Mundo de 2014 e a
Olimpíada no Rio de Janeiro, em 2016, os holofotes estão em todos os setores do
país. E é aí que temos um problema. Apesar dessas conquistas importantes para a
diplomacia e imagem externa brasileira, há um buraco gigantesco para ser tapado
visando o fortalecimento do Soft Power tupiniquim.
A começar pela base de tudo: a infraestrutura educacional e cultural
fraca, para não dizer ridícula, do país. A mesma nação que pleiteia vaga
permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, a mesma
potência sul-americana que desponta como liderança no continente carrega
consigo números irrisórios na evolução por uma educação de primeira linha.
Basta ver o mais recente ranking global da consultoria britânica Economist
Intelligence Unit, que colocou o Brasil na penúltima colocação na comparação
entre 40 nações. É a mesma nação que nunca ganhou um Prêmio Nobel. Quando o
assunto é cultura, o cenário é mais caótico. Apesar de o país ter cidades
históricas, como Olinda (PE) e Ouro Preto (MG), tombadas pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, de recentemente termos o
frevo reconhecido como patrimônio humano imaterial, entre outros exemplos, a
boa exploração dessas riquezas é muito tímida, se comparada às ações de outras
grandes nações.
Veja o trabalho internacional da Inglaterra com o British Council, da
Alemanha com o Instituto Goethe, da França com a Aliança Francesa, de Portugal
com o Instituto Camões e da China com o Instituto Confúcio. Esses instituições
difundem, além da língua, o patrimônio cultural, artístico e ideológico de suas
respectivas nações, criando intercâmbios nos países em que estão instaladas,
aumentando de forma inteligente sua influência.
E o Brasil?
O país do carnaval e do futebol e dos grandes eventos mundiais tem
em sua mão a possibilidade de se consolidar como grande expoente do Soft
Power. Na avaliação do governo, expressa nas palavras da ministra da
Cultura, Marta Suplicy, o momento do Brasil é agora: “Com o mundo em
transformação tão rápida, o desejo de desvendar o diferente, a procura do lazer
pelos povos mais afluentes, a mobilidade e fome por conhecimento, sobretudo
pela juventude, vislumbramos a condição de exercermos importante e decisiva
atração no mundo. O Ministério da Cultura estuda os melhores instrumentos para
a potencialização desta oportunidade, agora acentuada pelas janelas que serão a
Copa e a Olimpíada”.
Além das importantes efemérides dos grandes eventos, a cultura
nacional precisa ser valorizada, de modo afirmativo, primeiro internamente e,
depois, por meio de ações externas que a tornem tão reconhecida como o cinema
norte-americano ou a gastronomia francesa. O Brasil é o país da Semana de 22,
da Tropicália e da Bossa-Nova, do Aleijadinho, do Machado de Assis e do
Fernando Meirelles. Com uma educação ruim da pré-escola às universidades, a
valorização histórica e cultural brasileira, baseada em um pluralismo, que,
talvez, seja único no mundo, é inexistente. Não se ensina e valoriza no país o
que temos de melhor. O nosso Soft Power é ainda trabalhado no
campo do clichê (o binômio de sempre) e estereótipos em torno da matriz
europeia-negra-indígena, uma vez que se apresentam os negros como um grupo e os
índios como outro, sem contar a diversidade étnica existente dentro de cada um
desses grupos e seus legados para a cultura nacional (afinal, havia centenas de
grupos indígenas diferentes, assim como foram trazidos para o Brasil negros de
diferentes tribos, o que culminou em um povo plural como o brasileiro).
É fundamental, portanto, uma ordenação em forma de políticas
públicas de longo prazo, para se construir um plano estratégico global de
valorização e exploração da cultura brasileira. É a hora, sim, de mostrar que
nem só de samba e futebol os brasileiros vivem, mas, primeiro, nós brasileiros
precisamos nos dar conta disso. E, de fato, parece que algo começou a acontecer.
Vem, vem, vem pra cultura, vem.
Leonardo Cássio é sócio-diretor da empresa de marketing
cultural Cult Cultura.
13 Futuro: Thais Polimeni reconhece que o futuro não pode ser acordado antes do tempo. E quando isso acontece, os Deuses assopram para outros rumos.
Minha música preferida, desde sempre, é "Aquarela", do
Toquinho e do Vinícius. Cada verso dela me faz refletir sobre a vida, as atitudes,
a infância, o futuro...
“E o futuro é uma astronave
Que tentamos pilotar
Não tem tempo, nem piedade
Nem tem hora de chegar
Sem pedir licença
Muda a nossa vida
E depois convida
A rir ou chorar...”
Quando criança, eu achava que, com 28 anos, estaria casada, com imóvel próprio e quitado, carros e, quiçá, filhos. Hoje me vejo, neste exato momento... De férias em São Luís, curtindo o São João e o sol do Maranhão! Feliz, bem acompanhada e, principalmente, aliviada por ter passado pelo pior inferno astral da minha vida.
Era para eu estar em New York City agora, mas, há poucos meses, tive meu visto negado para os Estados Unidos. Em dois passaportes! Não, não falei nada a mais do que me perguntaram no consulado, também não fui com nenhuma camiseta do Che (nem tenho!), nem inventei de fazer cena de musical quando me perguntaram o que eu faço no Brasil. Apenas falei a verdade e fui presenteada com um "pelas leis dos Estados Unidos, você não está autorizada a entrar".
Depois de ter a autorização negada também no passaporte italiano (os sistemas foram interligados este ano), pedi o reembolso da passagem de NY, que fazia parte do lindo trecho SP-Londres-NY-SP. Sim, seria uma viagem incrível para a Inglaterra e para os Estados Unidos no melhor estilo "Sex and the City", com companhias cheias de vida e alegria nas duas cidades. Com o reembolso, pelo menos eu iria conhecer Londres, um lugar que todos dizem que é a minha cara, cheia de atividades culturais, parques e com Banksy por todos os muros... Até descobrir que eu não teria reembolso – muito pelo contrário: teria que pagar R$ 1.400,00 à vista para fazer a mudança de trecho. Depois desses e outros imprevistos, acreditei que foram sinais para eu não viajar ao exterior este ano.
Há cerca de um mês, meu futuro, que agora é presente, mudou. Em meio ao retorno de Saturno, deparei-me com o dilema de estar fazendo a coisa certa ou se eu deveria ter insistido mais um pouco no plano inicial. Recebi a resposta durante uma despretensiosa pesquisa na internet, que veio por meio de uma frase do Kafka:
"Deixem dormir o futuro como merece. Se o acordarem antes do tempo, teremos um presente sonolento".
O futuro já chegou e me convidou a rir com uma amiga-irmã no Maranhão. Londres e Nova York serão acordadas no tempo certo.
“E o futuro é uma astronave
Que tentamos pilotar
Não tem tempo, nem piedade
Nem tem hora de chegar
Sem pedir licença
Muda a nossa vida
E depois convida
A rir ou chorar...”
Quando criança, eu achava que, com 28 anos, estaria casada, com imóvel próprio e quitado, carros e, quiçá, filhos. Hoje me vejo, neste exato momento... De férias em São Luís, curtindo o São João e o sol do Maranhão! Feliz, bem acompanhada e, principalmente, aliviada por ter passado pelo pior inferno astral da minha vida.
Era para eu estar em New York City agora, mas, há poucos meses, tive meu visto negado para os Estados Unidos. Em dois passaportes! Não, não falei nada a mais do que me perguntaram no consulado, também não fui com nenhuma camiseta do Che (nem tenho!), nem inventei de fazer cena de musical quando me perguntaram o que eu faço no Brasil. Apenas falei a verdade e fui presenteada com um "pelas leis dos Estados Unidos, você não está autorizada a entrar".
Depois de ter a autorização negada também no passaporte italiano (os sistemas foram interligados este ano), pedi o reembolso da passagem de NY, que fazia parte do lindo trecho SP-Londres-NY-SP. Sim, seria uma viagem incrível para a Inglaterra e para os Estados Unidos no melhor estilo "Sex and the City", com companhias cheias de vida e alegria nas duas cidades. Com o reembolso, pelo menos eu iria conhecer Londres, um lugar que todos dizem que é a minha cara, cheia de atividades culturais, parques e com Banksy por todos os muros... Até descobrir que eu não teria reembolso – muito pelo contrário: teria que pagar R$ 1.400,00 à vista para fazer a mudança de trecho. Depois desses e outros imprevistos, acreditei que foram sinais para eu não viajar ao exterior este ano.
Há cerca de um mês, meu futuro, que agora é presente, mudou. Em meio ao retorno de Saturno, deparei-me com o dilema de estar fazendo a coisa certa ou se eu deveria ter insistido mais um pouco no plano inicial. Recebi a resposta durante uma despretensiosa pesquisa na internet, que veio por meio de uma frase do Kafka:
"Deixem dormir o futuro como merece. Se o acordarem antes do tempo, teremos um presente sonolento".
O futuro já chegou e me convidou a rir com uma amiga-irmã no Maranhão. Londres e Nova York serão acordadas no tempo certo.
14 Perdão aos machos: Pobres machos-alfa, que, para se afirmar, enfraquecem e desprezam suas mulheres, sem saber que se enfraquecem também. Uma história de Elizabeth Soares
Ela nunca se achou melhor ou pior do que as outras mulheres. Mas era diferente, disso não tinha dúvida. Tia Leila, do alto de seus 17 anos, era uma revolucionária. Afinal, ouvir Queen, Legião Urbana e Barão Vermelho numa casa que só abria os ouvidos e a censura reminiscente dos anos 60 e 70 aos temas de novela e a algumas baladas do Roberto Carlos podia ser uma atitude ultrarrebelde, quase uma heresia. Falando nisso, uma vez ela ousou dizer que o Papa João Paulo II era a Besta! Foi um bafafá... disso eu me lembro bem...
Lembro-me também dos desenhos que ela fazia na primeira página dos meus cadernos. Eu os achava obras de arte. E a letra dela? Era linda! Eu não entendia como alguém com aqueles traços, com aquela delicadeza de alma, poderia ser um péssimo exemplo, como seus pais, irmãos, cunhados e afins viviam comentando nas festas e reuniões de família. Mas como a minha cabecinha infantil era facilmente influenciável, acabei decorando os conceitos que me injetaram no cérebro em doses cavalares. “Mulher que se preza não demonstra que está a fim”; “Se maquiar demais, usar decotes e roupas justas ou curtas é coisa de prostituta”; “Dar no primeiro encontro? Só se você for uma vadia!”.
Mas tia Leila provou que toda mulher poderia ir além, quebrar conceitos,
simplesmente não se importar com o que os outros dizem ou pensam a seu
respeito. Na família, ela foi a primeira a levantar a bandeira do feminismo.
Todas as atitudes dela diziam aos parentes: “O corpo é meu e eu faço com ele o
que eu quiser!”. Foi feliz enquanto pôde. Curtiu a noite, experimentou o sexo
com amor ou não, como dizia Cazuza, outro de seus ídolos.
E pagou o preço que todos os precursores pagam. Foi rejeitada, humilhada
e agredida. Obrigada a fazer um aborto e logo em seguida expulsa de casa, para
dar o exemplo a todas as outras mulheres, que nem sequer imaginassem seguir sua
trilha!
Sobreviveu como pôde. Até que se apaixonou de verdade. Engravidou do
homem que amava. Descobriu que teria gêmeos. Dois meninos. Estava feliz.
Descobriu que o pai de seus filhos era exatamente igual a todos os
homens de seu tempo. Com a demência que acomete os portadores de um mal chamado
machismo, doença crônica da alma, ele a esmagou sob seus punhos.
Nos olhos de tia Leila, agora apagados de liberdade, era fácil notar que
as dores geradas em seu corpo não se comparavam, nem de longe, às da sua alma.
E lá estava ela novamente na estrada, fugindo do que achava ser o mal do
século. Carregava dois pequenos homens no ventre, se perguntando se conseguiria
ensinar a eles algo diferente do que o mundo queria.
Nasceram na periferia da cidade, do mundo. Agora, só dependia dela. Quem
dera! Nem bem nascido, um deles adoeceu gravemente. Tia Leila, sem fogão, sem
geladeira, sem escolha, teve que engolir o orgulho e pedir para voltar à casa
que a expulsara. Era isso ou ver um dos filhos morrer de inanição em seus
braços. Retornou. Mas a condição era de que apenas ele poderia permanecer ali.
Com uma dor que esmagou mais uma vez seu coração, deixou-o lá. Era a única
chance que ele teria.
Criou sozinha o outro filho. Desde cedo, este demonstrou que lhe tinha
uma admiração incomum. Imitava-a em tudo: trejeitos, voz, preferências. De
certa forma, para ela era um alívio. Menos um machista no mundo!, pensou.
Começou a treinar mentalmente para lhe explicar algumas coisas, quando
chegasse a hora. Estava disposta a assisti-lo batalhar na contramão. Contra a
mão descarada da hipocrisia. Contra a mão pesada do preconceito Ela sabia que,
por mais que o preparasse, não conseguiria blindá-lo dos efeitos nocivos
causados por esta praga. Mas confiava em que, como ela, ele sobreviveria.
Essa confiança, no entanto, bambeava quando se lembrava do pedaço que
havia deixado para trás. Lamentava cada minuto que permanecia longe do outro
filho. Lastimava não ter visto os primeiros passos dele. Nem ouvido sua
primeira palavra. Soube que foi “mamãe”. Mas não foi para ela. Doeu de novo. E
doía todos os dias, uma dor silenciosa. Sabia que ninguém a ouviria, ainda que
gritasse. Por muitos anos, desejou secretamente ouvir aquele “mamãe” da voz
infantil que soara tão poucas vezes em seus ouvidos.
Até que, um dia, acordou e se viu coagida a jogar o sonho fora. Deu-se
conta de que o filho não era dela. Era macho. Era exatamente igual a todos os
homens que conheceu. Não a perdoou por nada. Pensava e agia como todos.
Humilhou-a enquanto teve chance, assim como ao irmão. Também nunca o chamou
assim.
Massacrada pela mão implacável do universo machista, aos poucos, tia
Leila foi cedendo às bizarrices dele. Sem nau forte o suficiente para continuar
no contrafluxo, mergulhou de vez naquele mar, seco de razão: encontrou na
religião seu refúgio. Ou seu ópio. E nessa nova viagem, foi tragada de uma vez
por todas.
Já era o século 21. E eu já era como hoje: um tipo de criança que não se
deixa iludir tão fácil. Já a via como ela realmente era. Mas era tarde. Ela não
era mais ela mesma.
Em seu último dia na Terra, tentou ver os homens que pôs no mundo. Achou
que precisava pedir perdão a eles por não conseguir ser, na maior parte de sua
vida, uma mulher subserviente às leis que, agora sabia, todas deveriam seguir:
“Oprima seu coração! Mate seus desejos!”. Ela assim o fez. Mas era tarde. Não
foi perdoada. Nem pelos filhos, nem pelos machos, nem pelas mulheres, nem por
seu coração.
15 O
Samba da Virada:
Sílvio Valentin ronda a cidade a te procurar, ó consciência! Quem sabe
cena de glória na avenida São João
Boêmio Henfil,
Rondei o centro da cidade de São Paulo dia desses e veio, sem nenhuma
percepção dos sons ao redor, a canção Ronda e a imediata
lembrança de Paulo Vanzolini. Cantarolei com voz insegura e saudade afinada e
senti falta do marcante timbre grave da cantora Marcia.
Cantarole Ronda com o autor, na voz envolvente de
Marcia:
Há sempre a voz de uma mulher na vida da gente e, no seu caso (como você
era e é fissurado), os pés femininos em esmalte escarlate. Se a gente começa a
falar de mulheres, logo abre uma cerveja e a conversa desanda – e resta ouvir
mais uma canção do Paulo.
Já estamos na época do correio eletrônico, mas confio no voo da graúna.
Sei que minha carta chegará durante o solo angelical do cavaco de um querubim.
Sei que as palavras ocuparão a boca da noite e o seio desnudo da madrugada –
sei que no firmamento existe Adoniran e uma boa roda de samba.
Por aqui a gente espera a virada – não a virada cultural – a virada de
mesa na educação, na saúde e na política. É como diz o dito popular: se a gente
abaixa e vira demais, aparece o que não deve e um político sacana interessado
em cuidar do nosso cofrinho. Pimenta no cofrinho dos outros é refresco.
Por aqui a gente nem sabe de quem corre – porque um fuzil AR-15 é
inofensivo perto da caneta de alguns deputados. O fuzil é um símbolo estúpido
de guerra, mas as canetas (um dia arma dos poetas) destroçam gerações inteiras.
Por aqui a gente samba miudinho na luta diária pela sobrevivência.
Outro dia os professores gritaram, no Viaduto do Chá, a insatisfação
salarial do funcionalismo público e as péssimas condições de trabalho. Dizem
que alguns integrantes daquele partido da labuta querem mesmo é fod...r a vida
dos educadores.
O Vanzolini e o Chico Buarque sabem que vai passar este tempo de toma
lá, dá cá; o tempo do jeitinho, do bloco dos batedores de carteira
engravatados, da construção de estádios e da falta de escolas no interior do
Maranhão; um dia passa a doença da corrupção com uma boa dose de um antibiótico
chamado: vergonha na cara.
Por aqui a gente espera a virada – não a virada cultural com suas mortes
e arrastões – a virada de consciência, a negação de tudo que é torpe e funesto.
Por aqui os milhões de brasileiros dignos não ensaiam gritos de gol e sim o
derradeiro Samba da virada.
16 Rumos: A vida nos
leva por caminhos semelhantes e parece se repetir. Certas nuanças a tornam
única para cada um, descobre Keli Vasconcelos, em nova viagem pela
cidade.
Damião e Wilson não se conhecem, mesmo trabalhando para a mesma frota de táxi. Mas ambos habitam seu espaço no extremo leste da cidade de São Paulo: enquanto um mora em São Miguel Paulista, o outro vive em São Mateus.
Damião está no segundo casamento, com uma administradora hospitalar, e tem três filhos. Os dois primeiros, um casal, do primeiro casório, estão grandes, ele já é avô. Wilson vive seu primeiro matrimônio, recente, com uma professora, e tem também um casal, sendo que o menino é de um relacionamento rápido, durou pouco mais de um ano. Ambos acreditam que acertaram em suas relações atuais, mas o passado está ali, materializado nos filhos, que jamais serão antigos.
“Casei bem jovem, tinha 20 anos, e a minha primeira esposa, 17. Fui educado para que o casamento fosse um laço eterno. Um dia, chegando a minha casa depois do trabalho, vi uma mala no corredor. Ela simplesmente disse: 'Acabou, quero viver a vida'. Pegou a mala, deu um beijo nos filhos, abriu a porta e não voltou mais. Foi um processo muito duro, precisei até fazer terapia para superá-lo”, falou Damião, enquanto aguardava o farol abrir em um trecho da Radial Leste.
“Namorei nove anos com minha atual esposa. Claro que tivemos discussões, nos separamos algumas vezes e nisso tive um relacionamento rápido. Quando voltei para a primeira, noivei. Já de casamento marcado, casa em construção, preparativos, nós trabalhando, ela apareceu na casa dos meus pais: 'Tô grávida, tenho certeza que é seu'. 'Tem mesmo?', retruquei. Um DNA resolveu tudo, e aceitamos, eu e minha esposa, o menino com todo o carinho”, disse Wilson, no caminho de volta, passando pela avenida Jacu-Pêssego, ainda aprendendo a lidar com o serviço de táxi, que tem menos de cinco meses para ele.
Damião é calejado na profissão: sempre na área automotiva. De instrutor de condutores a dono de autoescola. E de novo taxista, faz três anos. “Você não pode podar aquilo de que não teve culpa. Dirigir nem é mais uma questão de necessidade. Minha esposa também não dirige. Ela só se deu conta de que precisava de carro, quando tive um problema de saúde que me impossibilitou de dirigir”, ele exemplificou a esta pessoa que escreve e tem pavor de carro e direção.
“Nossa, seu acidente foi feio. Meses de cama, não deve ter sido fácil, não. Ah, mas também hoje, principalmente em São Paulo, tá melhor usar transporte público, apesar dos pesares”, analisou Wilson, quando ele perguntou a esta medrosa que escreve (e foi atropelada aos 12 anos) o porquê de não dirigir.
Damião nunca mais teve contato com a primeira esposa, nem mesmo seus filhos com ela. Wilson está preocupado, a ex-namorada deixa o filho com uma suposta madrinha e só vai buscá-lo no fim da noite.
“A cada 15 dias vou pegá-lo e nem sabia dessa madrinha. Sempre que posso, dou conselho, fico de olho, mas vejo que ele sente falta das duas figuras, pai e mãe. Eu e minha esposa fizemos um aniversário temático para ele, caça ao tesouro. Nós éramos os piratas e as crianças, os heróis que tinham que encontrar, por meio das pistas, o tesouro, que era um monte de doce num baú enterrado. Uma hora vi ele pensativo, enquanto todo mundo estava lá, se divertindo. A mãe dele não estava lá, ou seja, a festa não era completa”, pensou Wilson, estacionando o carro.
Ouvindo aquelas duas histórias desses dois taxistas, na ida e na volta de um evento a que precisei ir no mês passado, percebi como os caminhos são distintos, mas que não deixam de "ligar" com mais outros fatos e pessoas.
Ora curvas, ora retas, ora problemas, ora possíveis soluções. Eis os rumos da vida. *Os nomes originais dos personagens foram trocados para preservar as identidades.
17 Tempo: Nesta carreira ofuscante é preciso aprender que viver com crises é tão necessário quanto respirar. Tempo ao tempo, Thais Polimeni!
Novela "Titereiros Inc. ― Vivemos sua vida por você!"
Novos episódios da mais louca novela da web brasileira, de Jussara "Gonzo" Nunes
Episódio 4: Você conhece agora um dos funcionários da Titereiros, para desvendar essa incrível engrenagem.
Episódio 5: Edmilson precisa de uma forcinha na hora de prestar a prova tão desejada. Sem branco!
Tem tempo pra tudo. Tem um tempo em que tudo acaba. É o tempo-limite, a
bomba-relógio, o copo transbordando à chegada da gota d’água. Esse tempo pode
durar um ano, dois anos e meio, cinco anos, dez, cinquenta... Ou apenas dias.
O geógrafo David Harvey diz que a nossa relação com o tempo foi alterada
a partir da aceleração do tempo de giro dos produtos. A mesma geladeira não
passa mais por mais de uma geração, e ter um casamento “até que a morte os
separe” não é mais o grande objetivo das mulheres de hoje ― por mais frígida
que essa comparação possa parecer.
Muitos dizem que a impaciência e a ansiedade por novidade são uma
péssima característica da geração Y ou da novíssima geração Z, que não
conseguem permanecer muito tempo em um emprego ou até mesmo em uma relação.
Sendo uma fiel representante da geração Y, eu me pergunto quase diariamente:
que graça tem trabalhar em um projeto em que você sempre acreditou, mas no
qual, depois de um tempo, começa a perceber as incoerências? Que graça tem você
ficar casada com uma pessoa, depois de um tempo, cujos defeitos começa a não
suportar?
Percebi que vale mais a pena levar a vida sem tensão, mas com
intensidade, tentando aproveitar cada minuto, antes que chegue aquele
indeterminado tempo-limite. Às vezes chega, às vezes não. E depois de algumas
chegadas, eu aprendi a lidar melhor com o fim dos ciclos, com a partida do
amor. E por amar tanto, eu sempre deixei. Deixei ir e deixei de amar, mesmo com
lágrimas nos olhos, mas pelo menos consciente de que pior do que o medo de não
ser amada é a sensação anômica que o "deixar de amar" provoca.
Não é fácil viver em relacionamentos líquidos, como bem definiu o
sociólogo Zygmunt Bauman, influenciados pela efêmera vida virtual em rede. Os
ciclos dos relacionamentos ficaram mais curtos, sim, mas podemos enxergar esses
finais como uma oportunidade pra exercitar a paciência e conviver com os
defeitos que até então tinham sido escondidos no período da paixão. Temos
liberdade para ser diariamente felizes.
Em cada situação, seja pessoal, seja profissional, seguimos tentando
descobrir se é possível trabalhar pra paixão não acabar, ou se é melhor
trabalhar pra conviver no amor. Há também uma terceira alternativa, que é a de
nos desprender do passado e aprender a conviver com as crises existenciais,
conscientes de que esse é o caminho da felicidade.
18 Gasolina: Numa noite de bebedeira sem fim e muito
tédio, de repente, você apareceu. Como fui feliz ali, naquela madrugada tão
triste. História de Guilherme Fernandes
Cidade dos sonhos, horário de verão, 6h15.
A madrugada dá adeus lentamente, enquanto os trabalhadores se
espremem arbitrariamente dentro dos ônibus. É o rush de
pijamas, que acorda e vai atormentar a vida dos cidadãos de bem. Em suas faces,
objetivos a ser cumpridos. Uns querem dominar o mundo, ganhar promoções em seus
empregos, conquistar territórios.
Eu só quero dormir um pouco.
Voltar de mais uma noite perdida, vazia, sem alma.
Perambulei por alguns locais, vi alguns sorrisos, tomei algumas
bebidas. Algumas muitas, como sempre. Cambaleei pela noite e fui recepcionado
por um poste de luz, que tentava iluminar os meus passos desconexos. Era mais
um porre me desejando boa sorte e me jogando porta afora, para um mundo
desconhecido dos lugares-comuns.
Enxergava duplamente e desfocado. E, tal como uma televisão com
interferência no sinal, você apareceu. A rainha dos drinques com gasolina.
Transformou minha noite normal em uma saudável exceção. Exceção daquelas que dá
gosto de viver, e tristeza quando os primeiros postes são desligados, dando
lugar à luz do sol, que timidamente vai colorindo de azul o céu negro e
estrelado da música do Baleiro.
Exceções são exceções, baby.
Existem para tornar momentos mágicos, situações interessantes e
pesquisas científicas destituídas. Transformar exceções em regra não é
recomendado. Nunca foi. Nunca será. Por mais que sejam boas, exceções sempre
serão exceções. Mudar isso é tão nocivo quanto viver de acordo com as regras.
Uma pena, porque, com mais cinco minutos de trocas de olhares, te pagaria um
drinque e te levaria para a cama.
Seria o seu homem por alguns minutos, de acordo com a minha
excitação e a minha resistência. Nosso bafo de pinga barata e gasolina
empestearia o quarto, e, se ousássemos acender um cigarro depois da transa,
tudo iria pelos ares. Mas é uma pena que você foi apenas uma exceção. Um
delírio real. Um devaneio de um bêbado.
Que eu te encontre em outras noites, e que saibamos fazer melhor da
próxima vez.
19 Felicidade: A vida não tem
receita exata, mas vivê-la com algumas dicas preciosas ajuda as rugas a não
serem tão sofridas. Palavra de Sérgio Vaz.
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As coisas não nasceram para dar certo, somos nós é que fazemos as
coisas acontecerem, ou não.
Acredito que a gente tem que ter um foco a seguir, traçar metas, viver
por elas. Ou morrer tentando.
Jamais queimar etapas e saber reconhecer quando é a sua hora. O Acaso é
uma grande armadilha e destrói os sonhos fracos de pessoas que se acham fortes.
Procure não passar do tempo nem chegar antes.
Preparar o corpo, o espírito, estudar o tempo, o espaço. Não ser escravo
de nenhum dos dois.
Observe as coisas que interferem no seu dia e na sua noite. E saiba
entender que há aqueles sem sol e sem estrelas e que a vida não deve parar só
por isso.
Seja gentil com as pessoas e consigo mesmo. E gentileza não tem nada a
ver com fraqueza, pois, assim como um bom espadachim, é preciso ter elegância
para ferir seus adversários.
O que adianta uma boca grande e um coração pequeno? Nunca diga que faz,
se não faz.
Ame o teu ofício como uma religião, respeite suas convicções e as
pratique de verdade, mesmo quando não tiver ninguém olhando.
Milagres acontecem quando a gente vai à luta.
Pratique esportes, como arremesso de olhar, beijo na boca, poema no
ouvido dos outros, andar de mãos dadas com a pessoa amada, respirar o espaço
alheio, abraçar sonhos impossíveis e elogios à distância.
E, em hipótese alguma, tente chegar em primeiro. Chegar junto é melhor,
até porque o universo não distribui medalhas nem troféus.
Respeite as crianças, todas, inclusive aquela esquecida na sua memória.
Sem crianças não há razão nenhuma para se acreditar num mundo melhor.
As crianças não são o futuro, elas são o presente, e se ainda não
aprendemos com isso, somos nós, os adultos, que tiramos zero na escola.
Ser feliz não quer dizer que não devemos estar revoltados com as coisas
injustas que estão ao nosso redor, muito pelo contrário, ter uma causa
verdadeira é uma alegria que poucos podem ter.
Por isso, sorrir enquanto luta é uma forma de confundir os inimigos.
Principalmente os que habitam nossos corações.
E jamais se sujeite a ser carcereiro do sorriso alheio.
Não deixe que outras pessoas digam o que você deve ter, ou usar. Ter
coisas é tão importante como não tê-las, mas é você quem deve decidir.
Ter cartão de crédito é bom, porém, ter crédito nele tem um preço.
Se possível, aprecie as coisas simples da vida, vai que no futuro…
Adeus, pertences.
Esteja sempre disposto ao aprendizado, e não se esqueça que quem já sabe
tudo é porque não aprendeu nada.
As ruas são excelentes professoras de filosofia, pratique andar sobre
elas.
Procure desvendar as máscaras do dia a dia, pois o segredo está no
minúsculo ― assim como um belo espetáculo do crepúsculo, no pequeno gesto das
formiguinhas se esconde a grandeza a ser seguida pela humanidade.
Tenha amigos. Se não tem, seja. Eles virão.
Felicidade não se ensina, é uma magia, e o segredo está na disciplina de
uma vida sem truques e sem fogos de artifícios.
E não acredite em poetas.
São pessoas tristes que vendem alegria.
*Texto integrante do livro "Literatura, pão e poesia"
(Global Editora). Leia mais de Sérgio Vaz no blog "Colecionador de
Pedras", clicando aqui.
20 Bisavó: Existe certo espaço de tempo em que o senil encontra-se com o infantil. É nesse momento que se abrem as portas para a evolução. Conto de Gustavo Kosha.
São vagas as minhas lembranças daquele quarto, mas uma em particular é intensa e vive até hoje dentro de mim. Por mais estranho que seja, lembro-me do breu. Da escuridão. Estava sempre com a luz apagada e a janela fechada. Eu conseguia chegar até a porta e só. Parava ali. Não conseguia avançar.
Aquele quarto parecia um território proibido. Não que houvesse restrição
para entrar, a porta, diga-se, estava sempre aberta. O meu pai sempre me
incentivava a dar um passo a mais e romper com aquela linha imaginária que eu
traçara. Ele não insistia. No fundo, sabia que talvez eu até quisesse, mas não conseguia.
Era eu mesma que não me permitia passar daquele limite. Daquela porta.
Até onde costumava chegar, conseguia ver muito precariamente o final da
cama, à minha direita, e o grande armário embutido, à minha esquerda. O cheiro
era característico. Não sei de que, nunca mais senti aquele cheiro. Talvez
fosse o cheiro da escuridão. Da dor. Do sofrimento. Daquele quarto.
Meu pai ficava por poucos minutos lá dentro. Talvez ele também não se
sentisse bem ali. Talvez o fizesse por obrigação. Talvez não. Mas era certo
que, quando chegávamos à casa da minha avó e na hora de ir embora, o meu pai
sempre ia até o quarto. Eu também ia. Mas só até a porta. Sempre.
Ouvia dizer que ela estava melhorando. Que ela comia bem e mostrava uma
evolução "surpreendente" para a sua idade. Eu não entendia muito bem
o que isso queria dizer. Como alguém, em um quarto escuro, poderia estar
melhor? Mas ela estava. Minha avó garantia ao meu pai.
Eu me lembro dela antes da queda e da cirurgia. Era bem velha. Magra. O
rosto cansado era formado por camadas de pele que pareciam derreter umas sobre
as outras. Em sua boca faltavam alguns dentes, e a visão estava seriamente
prejudicada pelo glaucoma. Tudo isso fazia com que eu a evitasse. Não queria
que fosse assim, mas, aos três anos de idade, você segue os seus instintos
sinceramente, independentemente de quem goste ou se magoe com eles.
Certa vez, já com seis anos de idade, resolvi enfrentar aquele quarto.
Aquela escuridão. Resolvi que travaria aquela batalha sozinha. Era hora de
vencer as minhas paúras.
Ao meu limite cheguei facilmente. À porta do quarto. Agora, eu estava
ali, à beira de enfrentar um dos meus maiores desafios. Era como a beira de um
precipício. Cabia a mim continuar ou não. Pular de cabeça na escuridão. No
desconhecido. Encarar aquilo tudo com a coragem e a curiosidade de... uma
criança.
Hesitei alguns minutos. Ainda ouvia a conversa vinda da sala,
atravessando os corredores. Talvez tenha sido a primeira vez que senti o meu
coração acelerar. Disso, lembro-me bem. Fechava e abria os meus olhos tentando
me acostumar àquela escuridão. Estava, sim, por minha própria conta e risco. Eu
havia decidido que a hora tinha chegado.
Coloquei o pé esquerdo dentro do quarto. Lentamente, pelo movimento do
meu pé, meu corpo e, principalmente, minha cabeça foram também vencendo aquela
escuridão. O silêncio agora tomava conta dos meus ouvidos e também dos meus
pensamentos e acelerava mais ainda o meu coração.
Me sentia entrando em um outro mundo. Um novo mundo. Diferente. Sombrio.
Aquele lugar tão ameaçador por tantos anos ia aos poucos sendo desbravado por
mim. O medo era vencido. O orgulho de mim mesma me dava força para continuar.
Segui por aquele pequeno corredor, formado pelo armário embutido, à
esquerda, e a cama, à direita. Ao olhar para a cama, logo me deparei com o seu
rosto. Ela estava deitada e a sua cabeça ficava virada para a porta. Talvez por
inconscientemente saber disso, não quisesse nunca entrar ali. Saber que logo me
depararia com ela me causava medo. Dei apenas dois passos, parei e mirei o seu
corpo. Magro. Coberto por um fino lençol velho. A boca semiaberta buscava
sorver a vida de onde ela pudesse ser sorvida. Seus olhos estavam fechados.
Graças à claridade vinda do corredor, eu podia ver, com um pouco mais de
detalhes, o corpo e o rosto dela. Os meus olhos se acostumavam lentamente à
falta de luz.
Voltei a caminhar devagar, adentrando ainda mais o quarto, apoiada à
cama. Logo encontrei a sua mão sobre o colchão. Parei novamente. Por alguns
segundos olhei fixamente para aquela mão. Frágil. Quanto tempo? Há quanto
tempo?
Lentamente cheguei a minha mão mais perto da dela. Até que encostei os
meus dedos delicados na fina pele que revestia os dedos dela. Ela não esboçou
reação. Eu voltei a olhar para o seu rosto. Ela dormia. Ou pelo menos eu achava
isso.
Quando eu menos esperava, os seus dedos se entrelaçaram aos meus. Eu
levei um susto, e desse susto eu me recordo até hoje. Mas, assim como ela,
permaneci imóvel. Apenas olhando, agora, para as nossas mãos. Ela apertava sem
muita força os meus dedos. Eu fechei os olhos, senti uma coisa que não sabia o
que era e puxei, lentamente, a minha mão para longe da dela. Me afastei do
colchão, encostei no armário e olhei para a luz, vinda da porta sempre aberta.
Corri para fora do quarto. Voltei à luz. À claridade. À vida. Ao mundo
que eu vivia e que não pertencia mais a ela. Meu coração ainda batia forte. Foi
sem dúvida uma das experiências mais marcantes da minha infância. Lembro disso
até hoje, quase trinta anos depois. Foi a última vez que a vi se mover. Foi a
última vez que senti o seu toque. Foi a última vez que ela falou comigo, me
disse tudo o que eu queria saber e me fez entender perfeitamente a sua
situação. Tudo isso, sem dizer nenhuma palavra. Tudo isso em um único e breve
toque.
Talvez esse toque tenha sido a forma mais digna e carinhosa que ela
encontrou para me dizer adeus.
21 Faísca de vida: Nada havia naquela segunda-feira malsucedida, a não ser aquele vazio imenso, no poema triste de Anderson Estevan.
Não havia lusco-fusco
Não havia agitação
Não havia noite
Só havia o cinza
E uma segunda-feira malsucedida
Os faróis não funcionavam
Os mortos não ressuscitaram
Nem o mundo acabou
Nada aconteceu
O tempo não parou de repente
Nem uma faísca de verdade
Acendeu um pingo de vida
No meio de tanta angústia
E só havia o tédio
Imperioso, como um sonho torpe de um velho rei moribundo
*Anderson Estevan é jornalista, roteirista e escritor, autor do livro de
poemas "Cores primárias" (Editora Multifoco).
22 Madrugadas insólitas: Guilherme Fernandes está na vigília, confiando em que o Destino faça a sua parte. Por ora durma, Guilherme, o dia vem.
Da janela, vejo os primeiros raios de um tímido sol que ameaça sair.
Munido de boas intenções e não se fazendo de rogado, sinto-me bem. De coração
limpo.
Se ocorreu pela casualidade, que seja de bom grado.
Se não foi, que os sorrisos continuem brilhando nas bocas.
Somos animais selvagens, sedentos de surpresas e atos que nos tirem da
mesmice dos dias modorrentos. E não há nenhum mal nisso. Todo mundo tem um
ponto fraco, já dizia o bobo da corte de língua presa. Complete a música e
ganhe um café.
Qual é o meu, então? Te falo num piscar de olhos. Não tenho tempo para
jogos desnecessários. Esfinges são legais para quem não tem urgência de
felicidade. E eu tenho urgência. Eu sou a urgência.
Permito-me compartilhar momentos que são meus com quem quiser construir
coisas interessantes a partir deles. Claro que sem as facilidades que o
discurso pode presumir, mas com boas recompensas no caso de êxito.
Serão duradouros? Nunca se sabe.
Tendo leveza, já é um ótimo começo.
Noite insólita. Vozes se misturam com palavras, sorrisos com sotaques e
brincadeiras se mostram tão sérias quanto nossas responsabilidades. Sem
máscaras. Um brinde à insônia, protagonista e causadora de todos os sorrisos e
surpresas. Se não fosse por ela, nada disso seria tão proveitoso.
Próximos passos? Eu só preciso esperar que o destino trate de fazer o
seu trabalho.
E preciso dormir.
Urgente.
23 Amor da roça: É amor, mesmo que esteja na forma de um simples conto piegas, como esse de Leonardo Cássio.
Estava no carro com seu amigo. Eram 22h de um dia qualquer, de uma
semana qualquer em São Paulo. A cidade do concreto e do aço dava seus últimos
suspiros para, novamente, iniciar mais uma rotação em seu próprio eixo.
São Paulo não dorme. É possível sentir em uma rua, avenida ou beco
o medo, a alegria, a tristeza, a emoção, o tesão, a força, o poder, a vida. Em
um desses caminhos, CA seguia no carro de seu amigo. Era mais uma obrigação,
como qualquer outra: conhecer a amiga da jovem com a qual seu amigo sairia. Um
favor, uma tarefa simples.
No caminho pensava em coisas diversas: contas para pagar, no
último relacionamento fracassado, nos problemas de trabalho, no time que teria
uma importante partida no fim de semana seguinte. Pensava em tudo e em nada.
Seu amigo tagarelava palavras diversas, desordenadas e sem
sentido. Vocábulos torpes, esvoaçantes e desconexos. CA pensava em frases
escritas por Fernando Pessoa, lidas recentemente em um livro do poeta, que não
é apenas um poeta, que se confundiam com o falatório de seu brother.
Chegaram ao destino. Que destino seria, afinal? CA não tinha a mesma
empolgação do amigo, tergiversava, mas lá estava e, enquanto aguardavam o
possível ritual das duas pavoas, foram tomar uma cerveja para aumentar o frio
daquela noite.
Após alguns minutos, nem tímidas nem descontraídas, chegam as
jovens. A caminho do centro da cidade, onde a vida pulsa ininterruptamente, TS
e sua amiga mineira divertem-se como os moços da cidade. Contam um pouco sobre
si, riem, rabiscam algo, que se tornará um belo quadro de valor inestimável.
Param o carro em lugar nenhum e recorrem ao álcool para acelerar a
diversão e esconder qualquer tipo de nervosismo ou vergonha. As raras estrelas
dão o ar da graça para as convidadas vindas da roça, como TS as definia, e
entre um gole e outro de bebida, as bocas se cruzam em um ritual exótico.
TS ganhou das Deusas um rosto formoso, um sorriso jocoso e lábios
de mel. A pele, morena e cheirosa, era um oceano de prazer. O cabelo, cascata
de véu negro, sedoso e belo, parece ser o mais próximo daquilo a que chamamos
de perfeição. Os seios intumescidos e a cintura curvilínea lapidada por
Niemeyer completavam a obra de arte.
Alguns eventos são capazes de mudar destinos. CA, rapaz urbano,
workaholic, aventureiro, vinha tendo dias tediosos, incompletos. Nada de frios
na barriga. Nada de arrepios, sustos, surpresas. Parecia estar preso em uma
tabela de senos e cossenos, traçando ângulos agudos e obtusos, numa aritmética
transtornante. Sentia falta das redondilhas, dos sustenidos e bemóis, das
pinceladas, dos grafismos, dos enredos e argumentos, de toda criação. Da Arte.
Do beijo. Do afago. Estava tudo lá, naquela noite, nos lábios e pescoço de TS.
As luzes da metrópole foram ofuscadas pela pequena flor da roça e
a madrugada ganhou ritmo de poesia, que, ao amanhecer, deixou versos
incompletos. Mas como os galos de João Cabral de Melo Neto, que tecem de fio a
fio as manhãs, CA resolveu criar um novo dia, uma nova poesia, com versos
completos.
Encontrou TS pela internet e começaram a se corresponder
diariamente. Ele, em sua rotina enervada; ela, em seu dia a dia intenso. Mundos
distantes, desconhecidos; vidas distintas, desconhecidas. Todos aqueles
caracteres, toda a semiótica dos signos e símbolos soltos em um pequeno box de
uma rede social seriam capazes de transmitir a essência daquela noite? SMSs
podem nos conectar, mas são capazes de tecer novas manhãs?
CA vagava um dia por umas das centenas de milhares de ruas de sua
cidade e avistou um grafite, essa arte tão radical e tão cheia de beleza e
sentimento em meio ao protesto e raiva, que o fez refletir prontamente: “Se
tomares a rédea do teu coração, domarás então esse cavalo selvagem chamado
AMOR”.
A mensagem fora transmitida. Pouco importava para CA se era uma
frase de uma nobre figura da Idade Média, de um escritor famoso ou de um
filósofo de botequim: a mensagem fora recebida. Iria para a roça encontrar TS.
Mas nem todo poema atinge a precisão que imaginamos. Ao se colocar
a ponta do lápis no papel, certos elementos podem esvaziar os sentimentos que
queremos transpor para a posteridade. Certos eventos podem mudar os desfechos
de um poema. E de uma vida.
CA pegou o ônibus mesmo sabendo que TS tinha uma história não
terminada, que lá na roça, de que tanto falava, lá longe da grande civilização,
do trânsito caótico, da violência desenfreada e de toda a organicidade que
ordena uma megalópole, havia outro CA ou SO ou RA ou MA ou seja lá qual fosse o
nome. Não importava. Ele colocou a rédea em si, pegou o ônibus e foi para a
roça.
Era uma cidade como qualquer outra do interior que já havia
visitado. Um pouco maior do que imaginava, mas não menos calma e pacata do que
esperava. Entre um quarteirão e outro, rapidamente chegou ao ponto de encontro,
o posto de gasolina que TS indicou. Ansioso, foi comprar um chocolate para
agradar a garota que o fez percorrer todo aquele montante de quilômetros
intermináveis, naquela estrada curva e sem fim. TS chega.
O dia anoiteceu. Beijaram-se e o mesmo belo quadro da noite na
metrópole surgiu. As poucas estrelas, as luzes dos carros e casas, a brisa
leve, os sorrisos, as palpitações e calafrios. O mundo se calou para contemplar
aquele sentimento. Toda criação artística foi posta à prova, pois nada seria
capaz de traduzir a energia dali emanada. Beijaram-se.
TS levou o príncipe da metrópole, apelido posto por ela, para
conhecer os meandros da roça. Os pesqueiros no meio do mato, que emanam aquele
cheiro de chuva e terra que parece ficar na parte mais funda de nosso cérebro,
quase esquecido; as cachoeiras, que realizam uma dança hipnotizante, linda e
assustadora; todos os pássaros, que cantam uma ópera à Natureza, com uma paleta
de cores intermináveis; todas as árvores, que fazem cócegas nas nuvens, toda a
exuberância de anos milenares, toda uma vida escondida de CA.
Pela noite saíram para beber, dançar e se divertir sem se
preocupar com o fato de que ele partiria ao amanhecer, não havendo nenhum
indício de que ambos ficariam juntos. Foi mais uma noite incrível, na roça, tal
como na capital, só que com um carpete celeste infinitamente mais encantador.
Mal os galos triangularam entre si uma nova alvorada e CA estava
na estrada de volta a São Paulo. A estrada não era mais longa, apenas
entediante. O calor de TS estava nele, na pele, no coração, em todas as
terminações nervosas, músculos, ossos e membros. Não era amor, pensava. Não
poderia. Não acreditava em amor à primeira vista, em contos de fadas e todo
tipo de historietas piegas. O amor precisa ser cultivado: plantar a semente,
adubar, regar, cercar das intempéries, acompanhar com todo tipo de cuidados o
florescimento, prosseguir alimentando, regando, podando possíveis
incongruências e falhas. Não surge como um alvorecer da roça.
Haveria a opção do senso comum, do clichê balizado pela ausência
de aritmética explicativa, a Paixão, esse cometa incandescente que surge do
vulcão que pulsa em nosso peito, capaz de levar uma criatura de seu mundo para
outro apenas por um impulso primitivo, o desejo. Poderia ser esse fenômeno o
responsável por levar CA lá para a roça? Talvez. Que algoritmo ou decassílabo
poderia responder?
CA pouco sabe sobre o amor, assim como a maioria das pessoas. Um
pinguim, um leão ou um albatroz talvez saibam mais (mesmo sem saber que sabem)
sobre esse sentimento do que nós, ditos seres humanos. O amor é como a estrada
que levou CA à terra de TS: firme, consistente, de paisagem exuberante. Mas, a
cada automóvel que passa, a cada chuva, vento forte ou sol a pino, ela se
desgasta, torna-se menos coesa e fraqueja. Alguns reparos são suficientes para
que continue suportando todo tipo de carga a que é posta à prova só que, certos
buracos abertos, mesmo fechados, não preenchem todo o vazio existente. A
estrada permanece lá, mas já não é a mesma.
CA segue sua rotina. TS, também. Estão separados por um caminho,
um único caminho de mil saídas, de mil retornos, de mil vicinais. Permanecem
conectados, não pelo beijo ardente, pelo abraço apertado ou pelos suspiros ao
pé do ouvido. Mantêm-se ligados pelos avanços tecnológicos, pelo frenesi
digital, que até lá na roça presta seus serviços mágicos. Estão separados,
interpretando sentimentos através de textos curtos, através de caracteres
limitados, através de combinações de teclas, através de uma nuvem que não é a
mesma que as árvores tocam e que no faz sonhar.
De certa forma CA amou. Amou aquela figura renascentista, tirada
dos pincéis de Rafael. Amou curtamente, como as mensagens trocadas. Amou a roça
e seus deleites. Amou, apenas. De volta à cidade que sofre de insônia, semanas
depois, pensava em TS, no que ela estaria fazendo, nos pensamentos dela sobre
ele — se é que havia algum pensamento —, nos outros anônimos que poderiam estar
agora cortejando sua princesa. As mensagens continuam, o sentimento continua,
mas há uma estrada no meio do caminho.
Mas assim é a vida. Um pequeno evento trouxe uma história forte e
intensa, que talvez seja suficiente para ser contada em um filme, peça de
teatro ou poema. Quem sabe? Suficiente para um conto, decerto. O poema ficou
incompleto, mas o que foi escrito talvez baste para emocionar quem lê, mesmo
que esteja na forma de um simples conto piegas.
24 O
bicho que não tinha como se proteger: Era uma vez uma fada faceira que
ensinou a camuflagem para um bicho medroso. Adivinha quem é? Fábula singela de Antônio
Lemos Augusto.
Naqueles tempos, era só um bichinho, sem classificação científica e sem
mesmo nome popular. Não conseguia se esconder dos animais que gostariam de
comê-lo. Se subia na árvore, logo aparecia o macaco ou um pássaro para tentar
agarrá-lo e tinha que fugir desesperado. Se estava no chão, era presa fácil
para galinhas, gatos, cobras... Vivia aos pulos. Não tinha sossego. Não
conseguia descansar, sempre a fugir, fugir, fugir, fugir.
E foi dando uma tristeza nele. Observava que cada bicho tinha uma forma de se proteger dos seus predadores. Uns eram velozes, outros exalavam odores que espantavam até a morte, outros lançavam espinhos, outros pulavam, outros se enfiavam em buracos... Sempre tinha, em cada bicho, uma forma de ludibriar o predador.
Mas não para ele. E, claro, os da sua espécie morriam logo, jovens, muitos não procriavam, era o medo, o medo, o medo.
Foi entrando numa tristeza sem fim. Já tinha consultado psicólogos, psiquiatras, tomado remédios controlados, mas não tinha jeito: não havia terapia que resolvesse um problema que era da natureza. Se subia na árvore, ficava exposto. Se estava no chão, ficava exposto também. Não era dos mais velozes, não pulava, não jogava veneno e não se fazia fedido para espantar o inimigo.
E, a cada dia, o nível de tristeza subia, subia ao ponto de o bicho não suportar e querer parar de fugir até cair no papo de um pardal ou nas garras de um gato.
Foi quando ela lhe apareceu.
Não era bonita, mas era de uma simpatia tremenda.
Logo lhe perguntou o que tinha. Ele, assustado, olhava para aquela figura, levitando, sorridente: quem é você?
"Sou a fada dos bichos tristes", disse a moça.
Ele pensou que só bastava mais essa: além de fugir, fugir, fugir, ter que aturar também uma louca que se dizia fada. Fadas não existem, a não ser em livros e em hospícios.
Mas a fada adivinhou o que o bicho tinha na cabeça e sorriu um sorriso meigo de criança lambuzada de doce. E disse que ele estava triste e precisava de uma solução para a vida dele, e também para a de todos da espécie. E ela era a solução.
Bem, não custava ouvir, não é?
A fada dos bichos tristes demonstrou saber de toda a história, mesmo sem ele lhe ter revelado: das fugas sem fim, da ausência de uma defesa que a natureza tivesse lhe dado para se proteger. Ela tinha a forma de uma fêmea da espécie dele, mas logo lhe revelou que aparecia para cada animal como se fosse um deles: se a tristeza sem fim era da cascavel, cascavel a fada seria. Se fosse do leopardo, leopardo fêmea a fada seria...
O bicho riu, riu muito do que achou ser mentira, mas logo se viu de frente com uma leoa que se transformou em égua e mudou-se para pernilongo e passou a ser uma papagaia para voltar a ser como ele. Depois da performance, o bicho resolveu acreditar, e acreditou.
A fada ficou satisfeita com a mudança na fé do bicho e avisou que daria um poder a ele e a todos da sua espécie. A fada cruzou os braços e começou a dizer palavras estranhas, piscou 42 vezes, rodopiou três voltas e meia, fungou cinco vezes, deu seis pulinhos e uma reboladinha na frente de um assustado bicho. "Bom, muito bom", disse ela. "Falta só o estalo nos dedos."
Com um estalo nos dedos, fez surgir um espelho. Disse para o bicho olhar-se no espelho. Mas o bicho não viu nada. Viu só a folhagem verde que estava atrás dele. O bicho arregalou-se todo de susto: ele estava ali, mas não estava ali? Deu um gritinho estranho de pavor.
E começou a ter um certo medo da fada. Fada ou bruxa???
"Fada, claro", lhe disse a fada, que lhe adivinhou o pensamento. "Este é o seu poder: estar aí e não ser visto." E lhe ensinou a palavra “camuflagem”...
E é por isso que os olhos dos bichos grandes muitas vezes olham e não enxergam bichos por aí, como bem ensina Huckleberry Finn, grande personagem de Mark Twain: “A gente pode ver e não ver ao mesmo tempo”.
E a fada, feliz da vida por mais uma boa ação, foi embora atender ao chamado de uma paca com complexo de capivara...
E foi dando uma tristeza nele. Observava que cada bicho tinha uma forma de se proteger dos seus predadores. Uns eram velozes, outros exalavam odores que espantavam até a morte, outros lançavam espinhos, outros pulavam, outros se enfiavam em buracos... Sempre tinha, em cada bicho, uma forma de ludibriar o predador.
Mas não para ele. E, claro, os da sua espécie morriam logo, jovens, muitos não procriavam, era o medo, o medo, o medo.
Foi entrando numa tristeza sem fim. Já tinha consultado psicólogos, psiquiatras, tomado remédios controlados, mas não tinha jeito: não havia terapia que resolvesse um problema que era da natureza. Se subia na árvore, ficava exposto. Se estava no chão, ficava exposto também. Não era dos mais velozes, não pulava, não jogava veneno e não se fazia fedido para espantar o inimigo.
E, a cada dia, o nível de tristeza subia, subia ao ponto de o bicho não suportar e querer parar de fugir até cair no papo de um pardal ou nas garras de um gato.
Foi quando ela lhe apareceu.
Não era bonita, mas era de uma simpatia tremenda.
Logo lhe perguntou o que tinha. Ele, assustado, olhava para aquela figura, levitando, sorridente: quem é você?
"Sou a fada dos bichos tristes", disse a moça.
Ele pensou que só bastava mais essa: além de fugir, fugir, fugir, ter que aturar também uma louca que se dizia fada. Fadas não existem, a não ser em livros e em hospícios.
Mas a fada adivinhou o que o bicho tinha na cabeça e sorriu um sorriso meigo de criança lambuzada de doce. E disse que ele estava triste e precisava de uma solução para a vida dele, e também para a de todos da espécie. E ela era a solução.
Bem, não custava ouvir, não é?
A fada dos bichos tristes demonstrou saber de toda a história, mesmo sem ele lhe ter revelado: das fugas sem fim, da ausência de uma defesa que a natureza tivesse lhe dado para se proteger. Ela tinha a forma de uma fêmea da espécie dele, mas logo lhe revelou que aparecia para cada animal como se fosse um deles: se a tristeza sem fim era da cascavel, cascavel a fada seria. Se fosse do leopardo, leopardo fêmea a fada seria...
O bicho riu, riu muito do que achou ser mentira, mas logo se viu de frente com uma leoa que se transformou em égua e mudou-se para pernilongo e passou a ser uma papagaia para voltar a ser como ele. Depois da performance, o bicho resolveu acreditar, e acreditou.
A fada ficou satisfeita com a mudança na fé do bicho e avisou que daria um poder a ele e a todos da sua espécie. A fada cruzou os braços e começou a dizer palavras estranhas, piscou 42 vezes, rodopiou três voltas e meia, fungou cinco vezes, deu seis pulinhos e uma reboladinha na frente de um assustado bicho. "Bom, muito bom", disse ela. "Falta só o estalo nos dedos."
Com um estalo nos dedos, fez surgir um espelho. Disse para o bicho olhar-se no espelho. Mas o bicho não viu nada. Viu só a folhagem verde que estava atrás dele. O bicho arregalou-se todo de susto: ele estava ali, mas não estava ali? Deu um gritinho estranho de pavor.
E começou a ter um certo medo da fada. Fada ou bruxa???
"Fada, claro", lhe disse a fada, que lhe adivinhou o pensamento. "Este é o seu poder: estar aí e não ser visto." E lhe ensinou a palavra “camuflagem”...
E é por isso que os olhos dos bichos grandes muitas vezes olham e não enxergam bichos por aí, como bem ensina Huckleberry Finn, grande personagem de Mark Twain: “A gente pode ver e não ver ao mesmo tempo”.
E a fada, feliz da vida por mais uma boa ação, foi embora atender ao chamado de uma paca com complexo de capivara...
*Antônio Rodrigues de Lemos Augusto é jornalista, escritor e advogado.
25 Fotografia crônica: Júlio era um funcionário exemplar, sempre com sua camisa amarelada e social e sua esquisitice. Quem nos apresenta o homem é Alessandro Araujo.
O céu nublado trançado aos fios do Metrô e pela janela fixava as casas
passando rapidamente. Amontoadas de pessoas brancas, negras, sorridentes ou
confusas – teve vontade de ser músico. Compor uma ópera parisiense com todo
aquele instante. Pouco antes de completar seus trinta e dois anos, já em parte
calvo e alguns fios brancos. Caminhava na calçada do prédio onde ficava o seu
trabalho. Há oito anos no mesmo percurso. Sua aparência, como diziam os colegas
de escritório, beirava os cinquenta. A camisa social branca era a preferida. E,
apesar de todo o cuidado ao levar as roupas para a lavanderia de seu bairro no
mesmo dia da semana, as brancas eram amareladas. No almoço com os colegas,
preferia o self-service de mesmo cardápio. Conhecia o garçom,
o cozinheiro e o dono, que era chamado de Supimpa. Apelido dado pelo pessoal do
escritório. Quando perguntavam se o almoço estava bom, ele respondia – Supimpa.
Uma gíria tão démodé quanto a decoração do restaurante;
cadeiras na altura do balcão e palitos de dente sem embalagem. O garçom andava
como o verdadeiro dono do restaurante. Anotava com pulso forte os erros dos
garçons iniciantes. Com uma caderneta sempre à mão, acenava a pressa do
cliente. Seus passos ecoavam na madeira escura.
A amarelada camisa branca de Júlio dava certa credibilidade no escritório de contabilidade S. Cardoso & Associados. Os clientes sentiam anos de experiência, quando Júlio simplesmente auditava noções básicas de planejamento. Olhava por cima dos óculos de armação dourada, rabiscando números e imprimindo planilhas. A gaveta de sua mesa regurgitava de manuais, apostilas e livros com edição atualizada e corrigida. Um mártir do relógio, não atrasava um prazo. Júlio cumprimentava com um gesto superficial com as mãos. Usava muito as mãos, fácil sentir seu nervosismo – espalmava as bochechas. Nos happy hours contava piadas de programa de televisão de canal aberto. Só bebia uísque. Empolgava-se com as piadas como uma novidade que só ele sabia. Em seu copo, somente uísque e gelo de água de coco. Uma dádiva divina, segundo Júlio. Aumentava a voz – Sou o melhor contabilista! A bebedeira estendia-se até as vinte e três horas e quarenta minutos. Um mártir do relógio, falavam seus colegas. No dia seguinte, os cumprimentos e a camisa amarelada desfilavam no escritório. Nada acontecia. Se algum colega insistisse para Júlio contar a piada do dia anterior, ele movia os dedos; não entendia, dissimuladamente. O escritório de contabilidade estacionava no quinto andar de um prédio antiquado da Avenida Ipiranga. Cadeiras verdes desbotadas anunciavam anos de uso. Duas máquinas de escrever elétricas e mesas brancas. Ao lado da cafeteira, uma impressora para folhas perfuradas. Carpete bordô, um relógio central grande, que rangia no passar dos minutos. Computadores que lembravam as primeiras invenções da Microsoft, da mesma cor da camisa de Júlio.
O porteiro adorava o inquilino do apartamento número 717. Júlio era o morador que todos os síndicos adotariam como representante de moradores e inquilinos. Sem visitas, sem barulho, aluguel em dia e sorridente no bom-dia. Mesmo após as bebedeiras, o porteiro anunciava – Foi curtir a vida dura, Júlio? E ele respondia – Pra não perder a mania, com as mãos. Uma luminária na mesa central da sala, mesa e cadeiras brancas, carpete amarelo. Muitas fotografias em molduras de plástico, espalhadas na estante ao lado de bibelôs de vidro. Geladeira com frutas, legumes e macarrão congelado. Enquanto requentava no micro-ondas, ouvia em sua vitrola La Muette de Portici, de Daniel Auber. Sentindo-se no verdadeiro Palais Garnier. Dançava, gesticulava suas mãos finas. Foi numa tarde quente de domingo, festa de confraternização do escritório de contabilidade S. Cardoso & Associados. Todos os contábeis com roupas de feriado; eles eram nitidamente desconfortáveis fora do traje camisa. Comiam carne de porco e picanha em guardanapos encharcados de óleo, que faziam os lábios cintilar. Cerveja em copos de alumínio com o logotipo do escritório. As sandálias e bermudas deixavam à mostra pernas desacostumadas com o verão. A premiação da festa – uma viagem a Paris. O anunciante, a cada cinco minutos, tomava o microfone para si com voz grossa; ressoava uma imitação estranha de indicação ao Oscar – E a estátua francesa vai para!... Aumentava a tonalidade no fim da frase. Júlio sacudia a cabeça e os braços, vidrado no locutor. Supimpa e os garçons do self-service estavam lá, convidados de honra; serviam, mas também bebiam. O locutor fazia apelações em momentos curtos, iniciava por times de futebol e novamente a frase marcante – E a estátua francesa vai para!... Júlio caminhava lentamente pelo gramado, copo de alumínio e uísque. Agitava-se sempre com a microfonia das caixas de som. Os contabilistas se abarrotavam ao lado da churrasqueira, eufóricos, suados, copos derramavam cerveja nas camisetas. A distinta aparição do locutor tomou voz. Todos arregalaram os olhos – A estátua está dentro dessa urna! Quem vai! Supimpa soltou um palavrão embrutecido. A noite começou com o berro contido do vencedor Júlio. E, em sua estante viçosa de madeira, ao lado de bibelôs de vidro, sob a luz refletida no carpete amarelo, Júlio segurava o talher com macarrão, legumes e olhava fixamente para sua antiga foto em frente ao Palais Garnier.
A amarelada camisa branca de Júlio dava certa credibilidade no escritório de contabilidade S. Cardoso & Associados. Os clientes sentiam anos de experiência, quando Júlio simplesmente auditava noções básicas de planejamento. Olhava por cima dos óculos de armação dourada, rabiscando números e imprimindo planilhas. A gaveta de sua mesa regurgitava de manuais, apostilas e livros com edição atualizada e corrigida. Um mártir do relógio, não atrasava um prazo. Júlio cumprimentava com um gesto superficial com as mãos. Usava muito as mãos, fácil sentir seu nervosismo – espalmava as bochechas. Nos happy hours contava piadas de programa de televisão de canal aberto. Só bebia uísque. Empolgava-se com as piadas como uma novidade que só ele sabia. Em seu copo, somente uísque e gelo de água de coco. Uma dádiva divina, segundo Júlio. Aumentava a voz – Sou o melhor contabilista! A bebedeira estendia-se até as vinte e três horas e quarenta minutos. Um mártir do relógio, falavam seus colegas. No dia seguinte, os cumprimentos e a camisa amarelada desfilavam no escritório. Nada acontecia. Se algum colega insistisse para Júlio contar a piada do dia anterior, ele movia os dedos; não entendia, dissimuladamente. O escritório de contabilidade estacionava no quinto andar de um prédio antiquado da Avenida Ipiranga. Cadeiras verdes desbotadas anunciavam anos de uso. Duas máquinas de escrever elétricas e mesas brancas. Ao lado da cafeteira, uma impressora para folhas perfuradas. Carpete bordô, um relógio central grande, que rangia no passar dos minutos. Computadores que lembravam as primeiras invenções da Microsoft, da mesma cor da camisa de Júlio.
O porteiro adorava o inquilino do apartamento número 717. Júlio era o morador que todos os síndicos adotariam como representante de moradores e inquilinos. Sem visitas, sem barulho, aluguel em dia e sorridente no bom-dia. Mesmo após as bebedeiras, o porteiro anunciava – Foi curtir a vida dura, Júlio? E ele respondia – Pra não perder a mania, com as mãos. Uma luminária na mesa central da sala, mesa e cadeiras brancas, carpete amarelo. Muitas fotografias em molduras de plástico, espalhadas na estante ao lado de bibelôs de vidro. Geladeira com frutas, legumes e macarrão congelado. Enquanto requentava no micro-ondas, ouvia em sua vitrola La Muette de Portici, de Daniel Auber. Sentindo-se no verdadeiro Palais Garnier. Dançava, gesticulava suas mãos finas. Foi numa tarde quente de domingo, festa de confraternização do escritório de contabilidade S. Cardoso & Associados. Todos os contábeis com roupas de feriado; eles eram nitidamente desconfortáveis fora do traje camisa. Comiam carne de porco e picanha em guardanapos encharcados de óleo, que faziam os lábios cintilar. Cerveja em copos de alumínio com o logotipo do escritório. As sandálias e bermudas deixavam à mostra pernas desacostumadas com o verão. A premiação da festa – uma viagem a Paris. O anunciante, a cada cinco minutos, tomava o microfone para si com voz grossa; ressoava uma imitação estranha de indicação ao Oscar – E a estátua francesa vai para!... Aumentava a tonalidade no fim da frase. Júlio sacudia a cabeça e os braços, vidrado no locutor. Supimpa e os garçons do self-service estavam lá, convidados de honra; serviam, mas também bebiam. O locutor fazia apelações em momentos curtos, iniciava por times de futebol e novamente a frase marcante – E a estátua francesa vai para!... Júlio caminhava lentamente pelo gramado, copo de alumínio e uísque. Agitava-se sempre com a microfonia das caixas de som. Os contabilistas se abarrotavam ao lado da churrasqueira, eufóricos, suados, copos derramavam cerveja nas camisetas. A distinta aparição do locutor tomou voz. Todos arregalaram os olhos – A estátua está dentro dessa urna! Quem vai! Supimpa soltou um palavrão embrutecido. A noite começou com o berro contido do vencedor Júlio. E, em sua estante viçosa de madeira, ao lado de bibelôs de vidro, sob a luz refletida no carpete amarelo, Júlio segurava o talher com macarrão, legumes e olhava fixamente para sua antiga foto em frente ao Palais Garnier.
*Alessandro Araujo é escritor, autor do livro "Pro Santo &
outras perdições" (Editora Multifoco, 2012)
26 O ventilador: O encaixe perfeito. Apenas isso, porque a vida dela estava perdida e a dele continuaria com a mesma hipocrisia. Conto de alcova de Gustavo Kosha
Depois de um encaixe, perfeito e mais longo, os corpos relaxaram,
jogados ao chão. Ela se curvou sobre ele, como em uma reverência, e enterrou
com força os seus dedos nos cabelos encaracolados do amante.
Ele, com os olhos ainda fechados, a acariciava. Suas mãos
percorriam as coxas, as ancas dela. Subiam pela cintura, pelas costas.
Arranhavam cuidadosamente. Ele ainda tentou, em um último movimento, reunindo
as últimas forças, fincar-se dentro dela, arrancando um suspiro ainda mais
forte da parceira.
Depois veio o silêncio.
Os corpos, suados. No meio da tarde de fevereiro, não poderia ser
diferente. O sol era onipresente naquele quarto, estava em cada móvel. Imóvel.
Em cada cavidade e rachadura da parede antiga e úmida. Misturado às roupas que
se enroscavam pelo chão. No teto, o movimento do velho ventilador. Lento.
Cadenciado. Fazendo girar o calor, movimentando o ar quente. Era incansável,
ainda que preguiçoso. Não refrescava nada, mas permanecia ligado. Girando. Como
os pensamentos e sentimentos dos amantes.
Passado algum tempo, ela começou a levantar-se. Lentamente.
Com uma dificuldade quase senil, apoiou-se na cama e tirou os
joelhos do chão. Um de cada vez. Estavam marcados. Vermelhos. Sem dor não
existia prazer. Ele, já com os olhos abertos, passou levemente a mão sobre os
ferimentos dela e fez um comentário, que ela, apesar de não ouvir claramente,
desprezou.
Nua e já de pé, parou à frente do amante. Sentia-se poderosa
assim. Superior. Olhava o amante em uma posição de vantagem. Privilegiada. De cima
para baixo. Majestosa e imponente. Ele, ainda deitado, estava muito perto dos
pés dela. Mas por que pensar em tudo isso agora, depois de tudo o que haviam
feito? Depois de ser submissa durante horas? Ela sorriu, passando a mão pelos
cabelos ruivos. Enrolando-os e improvisando um rabo de cavalo, que rapidamente
se desfez.
Ele continuava sério. Contemplava aquele corpo que conhecia há
pouco tempo. A luz, que entrava pela janela e era barrada pelo corpo dela, dava
um sombreamento especial ao branco daquela pele. No rosto dela, ele enxergava,
bem definidos, apenas aqueles olhos misteriosos. Olhos que escondiam emoções e
histórias. Segredos, como um baú antigo, daqueles que as avós costumam guardar
sem saber o que se tem dentro, no porão dos antigos casarões.
Ela foi até a cômoda e revirou a bagunça. Revistas, papéis
amassados, pratos com restos de comida e latas de cerveja vazias. Chegou até a
sua bolsa. Ali dentro achou seu maço de cigarros, amassado. Ainda tinha um
cigarro. O último. Realmente estava com sorte aquele dia. Pegou seu isqueiro e
foi até a janela do quarto.
Ele permaneceu deitado. Não conseguia tirar os olhos daquele corpo
nu. Aquele corpo que, pelo menos por algumas horas, fora seu. Aquele corpo,
branco e pequeno, poderia ser seu cúmplice. Seu aliado. Sabia mais dele do que
a sua dona. E era assim que deveria ser. Sempre.
Resolveu levantar-se e ir juntar-se a ela, na janela.
Ela sentiu o abraço dele por trás. Acomodou-se ao corpo dele.
Encostou a cabeça no peito dele. Deu mais uma tragada, a mais longa desde que
acendera aquele cigarro e expeliu a fumaça. Relaxou. Por um momento achou que
tivesse morrido, e ali ela chegara ao Éden. Sem pecados. Sem pudores. Livre,
acorrentada somente ao corpo dele.
O ventilador continuava, ali. Somente ele sobre os amantes. A
única testemunha. Preguiçoso. Rodava.
Ela se virou, olhou nos olhos dele e, pela primeira vez em muito
tempo, beijou a boca de um cliente. Logo ela, que sempre dizia que nunca
beijaria quem comprasse o seu amor. Logo ela, sempre tão certa. Convicta.
Agora, estava ali. Entregue. Perdida.
O celular tocou. Ele interrompeu o beijo dela, assustado. Atendeu,
em um sobressalto. Ela voltou-se à janela. Enquanto fingia observar os prédios
e o azul do céu, ouvia atentamente a conversa.
Não, amor, já estou de saída. Fui pego de surpresa pelo
Roberto, que exigiu que eu discutisse com ele aquele contrato do doutor
Pereira. Mas já estou terminando, em uma hora, no máximo, estarei em casa...
Ela tentou barrar as lágrimas que sentia romperem os olhos.
Sem-cerimônia, ele começou a se vestir. Depois da cueca e da calça social,
sentou-se na cama para pôr as meias.
Ela voltou-se novamente para dentro do quarto, sorriu e disse que
precisava ir embora, rápido, pois também tinha compromisso.
Ele sorriu, sem dar muita atenção. Sem parar de colocar as meias. Sem olhar nos
olhos dela. Com a cabeça abaixada, sempre. Melhor assim. Ela também resolveu se
vestir.
Acabaram prontos praticamente juntos. Ao invés de um beijo de
despedida, ele esticou a mão com um maço de notas. Ela pensou por alguns
segundos em não aceitar aquele dinheiro, mas por que não aceitaria? Afinal, não
era esse o seu trabalho? Não havia sido a sua escolha? Aquele dia ela tinha
dado sorte. Era melhor pensar dessa maneira. Aquele dia o seu trabalho tinha
lhe dado um raro e, talvez único, momento de prazer. Ela sorriu, agradeceu e
guardou o dinheiro em sua bolsa. A última gentileza dele foi abrir a porta para
que ela deixasse o quarto primeiro. A última atitude dela foi agradecer de
costas e partir, sem olhar para trás.
Ele ainda perguntou pelo seu nome. Em vão. Não entendeu por que
aquela menina saiu correndo. Desesperada, sem ao menos esperar o elevador.
Descendo escada abaixo. Ele deu de ombros e se voltou para a porta. Antes de
fechá-la, porém, reparou no ventilador ligado. Girando. Mas não achou onde
desligá-lo. Também, o que importava? Um velho ventilador, que estava ali para
aquilo mesmo, girar, refrescar, e nem ao menos cumpria esse papel. Resolveu
deixá-lo ligado. Trancou a porta e partiu.
Antes de chegar ao carro, já havia esquecido daquela menina com
quem passara a tarde.
Ela, por sua vez, esquecera de que teria que continuar a viver,
mesmo que rodando, perdida, lentamente, dia após dia, sem saber ao certo para
que servia aquela sua vida ordinária. Lembrou-se do ventilador do quarto, teve
vontade de desligá-lo, mas agora já era tarde demais.
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